segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Faixa de Gaze

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Quantos metros de gaze são necessários na Faixa de Gaza?

De acordo com as informações, logo logo, a letra ‘e’ vai substituir a última letra ‘a’ do nome dessa região.

Dois mil e oito anos depois de Cristo compreendo que a Terra Santa tem que ser dessacralizada, antes que toda a santa gaze acabe.



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domingo, 21 de dezembro de 2008

C.P.F.

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Não tenho meu físico além do cadastro?

Sou corpo em um cartão azul

Com uma tarja magnética

Com frias letras brancas

 

Pessoa-cartão

Onze dígitos

Pessoa-número

Sou isso?

 

Dados e nada mais

Uma pessoa-cartão-numérica

Um mero número a mais

 

C.adastro            C.ontrole

P.essoa               P.olítico

F.ísica                F.eroz


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segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Já foi maior


A POESIA ESTÁ DIMINUINDO E PERDENDO SUA COR.



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sábado, 13 de dezembro de 2008

Inutensílio

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Além da utilidade

(Paulo Leminski)

O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A possessão diabólica. A plenitude da carne. O orgasmo. Estas coisas não precisam de justificação nem de justificativas.
Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida. As únicas coisas grandes e boas, que pode nos dar esta passagem pela crosta deste terceiro planeta depois do Sol (alguém conhece coisa além- Cartas à redação). Fazemos as coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais. A luta do trabalhador por melhores condições de vida é, no fundo, luta pelo acesso a estes bens, brilhando além dos horizontes estreitos do útil, do prático e do lucro.
Coisas inúteis (ou "in-úteis") são a própria finalidade da vida.
Vivemos num mundo contra a vida. A verdadeira vida. Que é feita de júbilo, liberdade e fulgor animal.
Cem mil anos-luz além da utilidade, que a mística imigrante do trabalho cultiva em nós, flores perversas no jardim do diabo, nome que damos a todas as forças que nos afastam da nossa felicidade, enquanto eu ou enquanto tribo.
A poesia é u principio do prazer no uso da linguagem. E os poderes deste mundo não suportam o prazer. A sociedade industrial, centrada no trabalho servo-mecânico, dos USA à URSS, compra, por salário, o potencial erótico das pessoas em troca de performances produtivas, numericamente calculáveis.
A função da poesia é a função do prazer na vida humana.
Quem quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a poesia. Ama outra coisa. Afinal, a arte só tem alcance prático em suas manifestações inferiores, na diluição da informação original. Os que exigem conteúdos querem que a poesia produza um lucroideológico.
O lucro da poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da utilidade.
Existe uma política na poesia que não se confunde com a política que vai na cabeça dos políticos. Uma política mais complexa, mais rarefeita, uma luz política ultra-violeta ou infra-vermelha. Uma política profunda, que é crítica da própria política, enquanto modo limitado de ver a vida.


NOTA: Este ensaio foi acrescido ao final do ensaio ARTE IN-ÚTIL, ARTE LIVRE? e publicado com pequenas modificações sob o título A ARTE E OUTROS INUTENSÍLIOS no jornal Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, p. 92, 18/10/1986, e apresentado como primeira aula do curso POESIA 5 LIÇÕES ministrado por Leminski na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo em 20/10/1986.


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quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Poesia Pulp

Poesia Pulp


‘Pulp’ é coisa de baixa qualidade
A poesia aqui nem baixa é
É subterrânea
Isso! Subterrânea qualidade

Se no quarteto acima qualidade rimou com qualidade
Eu não tive intenção disso
O que posso assumir
É que palavras iguais sempre rimam

Esse já é o terceiro quarteto
E isso prova que sei contar
Mas se alguém percebeu
Poesia não é matemática

Essa poesia é intrinsecamente Pulp
Pois é divertida
Sem pretensões artísticas megalômanas de ‘brilhar’
E só usei ‘intrinsecamente’ e ‘megalômanas’ por vaidade vocabular


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domingo, 7 de dezembro de 2008

Eu ia postar algo além disso, mas...

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Além dessa linha não haverá mais linhas, a postagem é só essa, só isso.


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domingo, 30 de novembro de 2008

Palavras Cegas (da série 'escrita experimental')

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temjo qer defeuai cm te,uo oljai e cim i rec ladi incnnrtiso

(Essa frase acima sem sentido e com palavras incorretas é resultado da experiência e tentativa de digitar de olhos fechados e com o teclado invertido, essa é uma série chamada de ‘escrita experimental’, a frase seria : “Tenho que digitar um texto sem olhar e com o teclado invertido”).


A intenção da série 'escrita experimental' é essa, provocar as coisas mais incomuns que se pode tentar escrever e a maneira que se usa no momento.

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terça-feira, 25 de novembro de 2008

Correta e Séria

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... não sei o que percorre meu último neurônio
se é um impulso (D)e r(a)zão ou de irracionalidade
não tenho como te mostrar isso em pala(v)ras
não há mane(i)ra de te fazer sentir o (Que) se passa em m(i)m
tenho um vocabulá(r)io de palavras c(o)mplicadas e 'filosóficas'
mas nada disso consegue me tradu(z)ir
e(M) qu(a)l idioma isso seria possível?
em qual alfabeto as letras (c)ontribuiriam mais com min(ha) forma (d)e escrever?
p(o)is escrevo escrevo e não sei porque não consigo usar vírgulas.
Por que?(é junto ou separado esse 'porque' (e esse?) ).
Vou colocar o parênteses dentro dos parênteses: ( ( ) )
Se você enxerga meu nome está dentro deles.
Pronto talvez os símbolos sejam mais corretos pra esclarecer as coisas
... (reticências é uma pontuação muito abstrata e adoro usá-la) ...
Agora vamos deixar de brincadeira e começar a escrever da forma correta e séria ...
só que agora o texto vai acabar pois de 'correta e séria' minha escrita não têm nada...


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segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Minha Geração

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MINHA GERAÇÃO


minha geração não gera nada
gera sim
filhos do descuido
da falta de educação sexual

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minha geração não diz nada
diz sim
'vai se fuder capitalismo'
e nem sabe que foder é um mercado supervalorizado

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minha geração não escreve nada
escreve sim
"tbm qero vc S2"
e conversa pouco ou quase nada

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minha geração não revoluciona nada
revoluciona sim
muda de estilo e revoluciona o mundo
da moda

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minha geração não faz história
faz história sim
estuda e decora ela
depois esquecem que os livros existem

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minha geração não luta por causas
luta sim
tem a galera do jiu-jitsu, do muai-tai, do judô
e sai todo mundo lutando

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minha geração não merece ser lembrada
merece sim
A geraçao que nasceu livre
mas nem percebeu esse detalhe.


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quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Palavras Cronometradas (da série 'escrita experimental')

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Tenho um minuto pra escrever essa palavras, o que pode ser dito em tão pouco tempo, algo que valha a pena dizer, perdão se eerrei alguma palvar não ha tempo de corrigir assim como na vida voce esta na contagem dela e nao ha tempo pra revisar ou retornar e corrigi se vivieu com todas as letras corretas das palvar viver!

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segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Encontro

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Ela estava na parada de ônibus quando o carro do seu último cliente da noite parou.
- Não quer uma carona.
Ela olhou desconfiada, pensou se ele teria mais algum interesse além da carona em si.
- Vamos continuar? - ela sempre estava com o seu profissionalismo ativo.
Ele sorriu.
- Não, apenas uma carona sem interesses sexuais.
Ela riu e entrou no carro.
- Posso lhe deixar a um quarteirão da sua casa, pois sei que não vai me deixar te levar até lá.
Ela nada falou, apesar de jovem, ele tinha uma certa experiência em tais situações.
- Mas me diga, eu sei que não te dei prazer e nem ao menos cheguei perto de te dar um orgasmo, o que fizemos não foi vazio?
Olhou para ele com espanto, nunca antes haviam reclamado e muito menos feito uma pergunta tão rude.
- ... apenas dinheiro. - ela foi áspera.
- Sei como é...
- Sabe minha criança? - ela pensou ter atingido o jovem homem com a irônica pergunta.
- Sei, tenho 28 anos, fui garoto de programa dos 17 ao 27 e ganhei muito dinheiro, por isso resolvi ajudar minha irmã quando ela também resolveu tornar-se uma 'acompanhante' pra poder pagar a faculdade, pois ela estuda numa instituição filantrópica...
- Sei qual é... - os dois riram.
- Por isso quando digo que sei o que foi esta noite não estava brincando.
Ela apurou os ouvidos pronta pra escutar o rapaz, sabia que dali viriam boas e verdadeiras palavras.
- ... mas você não precisa se preocupar com minhas opiniões, pois eu conheço o outro lado da moeda. Sei que dentre as pessoas que mais entendem o quanto o sexo é importante são as pessoas que o tornaram uma profissão, não porque estão praticando todo dia, elas sabem que fazem amor fora desses cenários profissionais e é muito mais verdadeiro e prazeroso. No começo confundimos é claro, mas depois adquirimos habilidade pra diferenciar o 'sexo em série' do 'sexo em amor'.
Ela tentou compreender as últimas palavras, mas ele não foi tão claro.
- Sexo em série?
- É, quando nós colocamos o relógio, marcamos a hora e mandamos ver no trabalho carnal, sem nem mesmo sentir que estamos ali, diante de um outro ser humano. É o nosso momento produtivo, em que nossa fábrica que é o corpo produz o sexo enlatado e vendido. Como aqueles produtos todos iguaizinhos nas prateleiras dos supermercados. E nós sabemos o quanto o nosso mercado é super no mundo todo. Pena que não haja superioridade num ato tão vazio.
Ela sabia exatamente do que ele estava falando, olhou diretamente para a fisionomia dele e não piscou durante alguns minutos. Ele, dirigindo, continuava.
- Por isso eu amo fazer amor com garotas de programa, não na hora de trabalho delas é claro.
- E hoje? - ela perguntou sorrindo sentido que podiam ter essa descontração. Ele também riu e continuou.
- Hoje queria ter essa sensação novamente, E tive a sorte de lhe encontrar.
Ela, vivida e experiente, pensou que não se sentiria envergonhada diante de um jovem como ele, mas percebeu que ele tinha uma bela visão da vida que ela tinha.
- Obrigado.
Ele diminuiu ainda mais a velocidade do carro e olhou nos olhos dela.
- E tenho que lhe confessar, poucas hoje em dia tem tanta delicadeza quanto você. Deveria cobrar bem mais. - ele falou claramente, mas temeu que ela não aceitasse tão bem a piada.
- Então temos que nos acertar, pois se mereço... - ela não terminou a frase pois não conteu as gargalhadas.
- Saber seu nome seria pedir demais? - ele bem sabia que ela não se chamava Clarissa.
Ela o fitou mais uma vez sem piscar e exitou.
- Eu... eu...não...posso.
- Entendo, sei como é difícil deixar que saibam quem somos de verdade. Eu mesmo nunca disse meu nome pra nenhum deles ou delas.
-...
Ela permaneceu calada e ficou pensando no que dizer, então se viu ansiosa diante de um homem, algo que há um bom tempo não acontece. A ansiedade transpirou nas mãos e ela não suportou:
- Não precisa parar um quarteirão antes da minha casa, hoje posso te mostrar um pouco de mim mesmo. - ela ficou encabulada com a própria atitude, mas sentiu-se bem em ter esse momento tão comum em sua vida, pois durante um bom tempo ela sempre voltou pra casa sozinha e agora um homem gentil e amável a acompanhava. Ela sorriu com a alma e pode realmente sentir que sua vida não era tão terrível quanto diziam aqueles preconceituosos que um dia ela chamou de amigos.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Confusão (Davi)

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Dilacerada a idéia, muros caídos entre mim e o além
Infinito querer de quem não sabe o que quer
Indeciso ir, ir por ir, e só
Motivo algum para se justificar como ser
Apenas ser, sendo.
Indo e nunca voltando, ‘não há como’.
Está tudo certo e errado ao mesmo tempo.
Escolhas diárias, que parecem ser destino.
Cotidiano devir, das coisas que vem e vão e vêm e vão...

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Deteriorado momento ido, passado ecoante em dias presentes.
O presente já não é mais presente no presente seguinte
Mas o presente seguinte é futuro, e será passado quando estivermos nesse futuro
Que será presente,
O futuro nunca se concretiza, é algo inexistente de fato,
O futuro é apenas uma idéia e nada mais que isso.
Decrépito tempo que nem mesmo é coerente.

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E quem sabe que pode saber o que sabe?
E se já sabe porque saber em sabe-lo?
Não é confuso conseguir concluir que estamos confusos?

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sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Educação(Albert Einstein)

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EDUCAÇÃO EM VISTA DE UM PENSAMENTO LIVRE

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Não basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque se tornará assim uma máquina utilizável, mas não uma personalidade. É necessário que adquira um sentimento, um senso prático daquilo que vale a pena ser empreendido, daquilo que é belo, do que é moralmente correto. A não ser assim, ele se assemelhará, com seus conhecimentos profissionais, mais a um cão ensinado do que a uma criatura harmoniosamente desenvolvida. Deve aprender a compreender as motivações dos homens, suas quimeras e suas angústias para determinar com exatidão seu lugar exato em relação a seus próximos e à comunidade. Estas reflexões essenciais, comunicadas à jovem geração graças aos contactos vivos com os professores, de forma alguma se encontram escritas nos manuais. É assim que se expressa e se forma de início toda a cultura. Quando aconselho com ardor "As Humanidades", quero recomendar esta cultura viva, e não um saber fossilizado, sobretudo em história e filosofia. Os excessos do sistema de competição e de especialização prematura, sob o falacioso pretexto de eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro. É preciso, enfim, tendo em vista a realização de uma educaçãoperfeita, desenvolver o espírito crítico na inteligência do jovem. Ora, a sobrecarga do espírito pelo sistema de notas entrava e necessariamente transforma a pesquisa em superficialidade e falta de cultura. O ensino deveria ser assim: quem o receba o recolha como um dom inestimável, mas nunca como uma obrigação penosa.
( Albert Einstein - Como Vejo o Mundo, página 16, 11ª ed.)
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sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Aquilo o que importa...

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"Há muitas importâncias sem ciências".
(Manoel de Barros)


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quinta-feira, 9 de outubro de 2008

SONETO DO PRAZER EFÊMERO (Bocage)

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Dizem que o rei cruel do Averno imundo

Tem entre as pernas caralhaz lanceta,
Para meter do cu na aberta greta
A quem não foder bem cá neste mundo:

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Tremei, humanos, deste mal profundo,
Deixai essas lições, sabida peta,
Foda-se a salvo, coma-se a punheta:
Este prazer da vida mais jucundo.

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Se pois guardar devemos castidade,
Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Senão para foder com liberdade?

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Fodam-se, pois, casadas e solteiras,
E seja isto já; que é curta a idade,
E as horas do prazer voam ligeiras!

.(Manuel Maria Barbosa du Bocage)

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" Prazeres, sócios meus, e meus tiranos! "
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sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Contagem dos Cílios

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Do 'Livro das Coisas Desimportantes':

- Toda segunda-feira de manhã, após lavar o rosto, contar os cílios superiores do olho esquerdo.


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sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Pensar não dói.

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... meu corpo dói. O pensamento é apenas este e todas as linhas teriam essa frase inicial, mas se elas continuam com outras palavras é porque consegui não deixar a dor me abater enquanto escrevo. O que posso dizer então enquanto todo os dedos doem ao escrever? Posso falar sobre falanges, mas reportaria a dedos e me lembraria das dores. Agora tenho que pensar em algo não-dolorido, mas o que não seria doloroso pensar agora? Mas esperem! Pensamentos doem? Que bom! Não sinto dor em pensar, apenas pensar. Começo a compreender realmente que o pensamento é invulnerável, claro, ele não é corpóreo, mas no campo dos pensamentos não há algo que o atinja? Penso e não acho um pensamento capaz de causar dor ao ato de pensar. Eis então o que procurava: um pedaço de invulnerabilidade nesse meu corpo mortal a mercê de todas as ameaças destrutíveis possíveis. Continua então o pensar e posso ir agora. Perdão pelo texto ser tão curto e dinâmico, mas meus pensamentos são mais rápidos do que a capacidade de capta-los em palavras.


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sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Risadas e álcool (2ª Parte)

- Mas aquele cara tinha um carrão hein...
Ela ia pra casa, mas encontrou uma companheira de trabalho na esquina.
- Não era só o carro que era grande...
Silêncio. A piada era velha e de mau gosto.
- Já vou pra casa...
Conferiu as horas. Madrugada alta. Se benzeu. Mais uma noite de labuta. Merece o dia como descanso.
- Tchau.
- Até amanhã.
‘Infelizmente’, ela pensou.

- Brigaram denovo minha filha?
- Mãe, ele chegou tarde ontem, aí fui perguntar...aí ele nem ligou...fiquei perguntando e ele nem prestava atenção...conseguiu dormir sem nenhum peso na consciência. Acordou cedo e só não me chamou de santa.
- Conversa com ele minha filha.
A mãe, do outro lado da linha, não entendia muito bem a situação, afinal a figura materna dessa história estava mais preocupada com qual vestido irá sair pra trabalhar hoje.
- Tá bem mãe...

Olhou-se no espelho, conferiu os seios, alguns hematomas; alguns homens tem ‘a pegada forte’, as vezes brutal demais para o gosto dela. Mas é o ofício, o cliente tem sempre a razão. Vestiu-se. O celular toca. Sua filha: “-Mãe, ele chegou tarde ontem, aí fui perguntar...aí ele nem ligou...fiquei perguntando e ele nem prestava atenção...”. O resto vocês já sabem; e se a pergunta em sua mente é sobre o porque da mãe dela ser prostituta eu responderia com um sincero ‘é sim, e o ‘porque’ apenas ela sabe, mas é uma boa sogra’. Era uma mulher de muitos verões, mas seu corpo estagnara naquele estágio em que a maturidade é uma benção. “Uma coroa gostosa” , como dissera, certa noite, um jovem cliente seu.

- Uma meota.
Colocou o dinheiro (muitas moedas) no balcão. Olhou ao redor, mesas vazias. Um ar quente vindo da rua. “Sol da porra macho!”. Falou sozinho, pois o dono do bar pegava a meota na prateleira.
- Aqui.
- Me arranja um copinho de plástico por favor?
- Toma.
Agradeceu, saiu sorrindo. Destampou a garrafa, colocou cachaça até a metade ergueu o copo para o sol e disse:
- Sangue de Cristo.
Tomou num gole só e riu por ter dito aquilo. Muitos anos atrás era vinho, agora o sangue era transparente. Seus tempos de batina não eram tão felizes quanto estes de ‘santidade’.
- Celibato é uma tortura humana. – terceira dose.
Bastavam três doses para o seu alcoólico filosofar.
- O homem nasceu para o sexo...e...e...a mulher também é claro...não esqueçamos hein.
“Esqueçamos”, falava só, mas imaginava uma igreja lotada de fiéis ao seu redor.
Procurou assento numa calçada alta, colocou a ‘meota’ do lado esquerdo, ergueu o copo:
- E tentar suprimir isso é torturante, eu que o diga, mas...mas...Oi! Tudo bem minha filha!?
Uma transeunte olhou pra ele e ele educadamente a cumprimentou. Ela, traumatizada com homens bêbados ( seu pai era alcoólatra e violento) apressou o passo.
- Pois é... celibato... coisa do demônio isso sim!Encerrou o solilóquio filosófico e tomou mais outra. Cinco doses o deixavam triste, mas “seus tempos de batina não eram tão felizes quanto esses de ‘santidade’”.

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terça-feira, 2 de setembro de 2008

Como ser um Escritor?

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No Google pergunto: “como ser um escritor?”. Por que perguntei uma besteira dessas? Não sei se é isso, mas tenho por mim que muitos daqueles escritores que vendem seus milhares de “best seller’s” (ou ‘besta numa sela’ como diz uma amiga minha, a Deiviane) aprenderam como ser um escritor justamente numa dessas páginas eletrônicas (mas não dêem muita atenção pra essa minha visão dos Best Seller’s, pois sou um hipócrita e falo mal deles enquanto me divirto lendo alguns).
Não sou anacrônico, nem dispenso as facilidades que a tecnologia pode ‘agilizar’, e nem sou alguém (ou um ninguém) que vai esculhambar o mundo digital só porque tá na moda todos os pretensos escritores fazerem isso. Parece ‘pose’ essa bandeira: “a tecnologia é uma ferramenta do sistema”. Sim, a internet começou no Pentágono, depois disso é grande parte a velha ‘pornografia acessível’. E desde quando o homem não pensa sexualmente? Pois é, a natureza não pode ser sobreposta por algo tão jovem quanto a razão (mas um dia chegamos a maturidade racional [pensam os filósofos racionais]). Não é um grande bem todo esse acervo digital desnecessário, grande parte é descartável e risível até; por exemplo, pra mim o Word é uma máquina de escrever, e nele tem todos os sortilégios de ferramentas que incrementam o texto ‘aqui’ e ‘ali’, coisas que amiúde são só futilidades pra deixar o programa mais caro pra venda.

Mas já ia me esquecendo da pergunta “como ser um escritor?”. Pois é, como? O Google dá umas páginas interessantes como: “Para ser escritor neste país é necessário muito mais do que amar a escrita, do que ter a cabeça fervilhando de histórias, é necessário ser imune à desmotivação”. Não só nesse país, em qualquer canto desse mundo um cara desmotivado não faz nada, mesmo que ele tenha condição financeira, se ele em si não estiver bem nada sairá de suas idéias por mais que tente. A instabilidade do ser humano, física ou psicológica, material ou abstrata não é em si um grande empecilho, vide os tantos ‘instáveis’ escritores que tanto contribuíram para o mundo literário.
O ‘bem’ que eu falo é com sua arte propriamente.

Imaginem então um escritor perguntar-se, “como ser um escritor?”, ele não deveria perguntar-se e sim já ter escrito isso em qualquer lugar, seja num guardanapo do bar quase todo molhado pela água que escorre do copo de cerveja gelada ou no Word. Ele não pode contentar-se em ficar pensando coisas, ele tem que escrever. Como diria eu pra mim mesmo, “pensar escritamente”. Claro, as palavras formam-se na mente, mas Manoel de Barros tinha “nascimentos na ponta do lápis”, portanto deixem que algumas idéias sejam paridas nos seus dedos (se digitadas) ou na ponta de suas canetas ou lápis. Tenha cérebros em cada ponta de seus dedos, mesmo que você só use os indicadores pra digitar. Não perca tempo (como fiz, pra construir esse texto) perguntando esse tipo de perguntas a si mesmo, trave solilóquios mais interessantes com sua pessoa. E não se preocupe tanto com o reconhecimento; pois eu, que sou um desconhecido, diria para outro desconhecido: “- de desconhecido pra desconhecido, ‘não nos preocupemos tanto em ser escritores meu amigo, pois dizer ‘SOU ESCRITOR’ soa como um reles emprego dos tantos reles empregos que esse sistema reles nos reserva para que não nos sintamos tão reles seres humanos. Mas... como é mesmo o seu nome?”.

No entanto, se os louros vierem receba-os e não se sinta um pecador caso os louros venham em formas femininas, ou uma pecadora se vierem em formas masculinas, ou um pecador se vierem em formas masculinas, ou uma pecadora se vier em formas femininas, ou um(a) pecador(a) se vier em formas de cédulas. Receba os louros que lhe agradar.

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V
“Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.”

...

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

(Manoel de Barros - Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada - de "O Guardador de Águas").


Desexpliquemos a nós mesmos. Quem disse que esse pergunta precisa ser respondida? Desrespondamos ela então.
“- Como ser um escritor?” – perguntam.
“-Simples, se o quilo do feijão subir denovo vamos comer soja” – respondem.

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segunda-feira, 1 de setembro de 2008

ÁRVORE

Pelas longas ruas de Paris caminha Catit. Alheia a tudo que acontece a sua volta ela compreende apenas a musica que escuta em seu player digital, uma coletânea repleta de musicas de rock obscuro, entre suas bandas favoritas estão Theater of Tragedy e Tristania, ela adora as guitarras pesadas e o vocal lírico, se pudesse ela cantaria como as vocalistas dessas bandas.

Catit é uma menina, uma mulher de pouco mais de vinte anos, de cabelos loiros, porem os tingiu de preto para combinar com a maquiagem pesada que costuma usar no rosto. O seu corpo esguio e franzino aparenta uma idade ainda menor do que a que possui. Com freqüência é barrada na entrada de Boates que freqüenta, acha um saco ter de mostrar sempre a identidade. Diz odiar essas boates, porem não as para de freqüentar por julgar-las um lugar onde não importa a roupa que use ninguém liga pra você dançando a musica, poderosa em seus movimentos lentos e compassados, no ritmo dos obscuros riffs de guitarra.

Toda a manhã segue o mesmo ritual. Levantar, lavar o rosto, escovar os dentes, não toma café, odeia coisas quentes, prefere um copo de água gelada para poder despertar, o banho que ás vezes toma em seguida também é gelado. Ela veste sempre o mesmo estilo de casaco, de preferência preto. De preferência de couro. Eles escondem o uniforme de garçonete que veste por baixo, não que ela tenha vergonha de sua profissão, mas por não gostar das cores amarela e azul do uniforme, onde já se viu um uniforme de garçonete amarelo e azul, deve ser a combinação de cores mais ridícula de um uniforme de garçonete no mundo inteiro, é o que pensa.

Ao caminhar pelas ruas de Paris ela percebe uma arvore que ela nunca nesses três anos trabalhando no Café du Monde havia reparado. Uma arvore escura, de folhas opacas e raízes expostas. Como nunca havia reparado nessa arvore? Era praticamente uma escultura gótica, suas preferidas, com os galhos distorcidos e fora de ordem como se fossem finos e longos dedos, como que estivessem tentando alcançar às outras arvores, como se fosse ganhar vida móvel em poucos instantes, como se olhasse pra ela e lhe pedisse um abraço. Como nunca havia visto aquela arvore? De repente tinha a certeza de que ela não estava lá antes.

Virou as costas e seguiu seu caminho para o trabalho. Nada ouvia que não fosse a musica “Cure” do Tristania que tocava no momento em seu Player Digital, não ouvia as buzinas, as conversas das pessoas na rua, não ouvia a velha senhora que pedia informação e que a xingava por não ter lhe dado atenção, não ouvia o bom dia que o senhor Olivier da padaria havia lhe dado como o faz todos os dias. – Mas que menina! Um dia ela retribui o meu bom dia. – assim falava o senhor Olivier da padaria. Ela talvez nunca o tenha realmente ouvido desejar o bom dia pra ela já que sempre passava em frente a padaria com o seu player digital no volume maximo, talvez se o tivesse ouvido teria lhe desejado um bom dia também. Talvez.

Dobrou a esquina e depois atravessou a rua. Parou diante da banca de revistas e leu as manchetes em um jornal, nada que realmente tivesse interesse, as manchetes mais importantes do dia eram a respeito da queda da bolsa de valores de New York, nas capas de revistas os rostos de artistas internacionais Hollywoodianos, muito longe da realidade daquela garota de pele clara como a neve. Então ela deixa a frente da banda de revistas e caminha os metros restantes para a estação de metrô.

Desce duas estações depois, o player agora toca um pouco de Lacuna Coil, uma banda italiana que compõe em inglês, da qual tinha algumas musicas que ela gostava. A que estava sendo executada no momento era “Within Me” do álbum Comalies. Ela queria poder cantar do jeito de Cristina Scabbia, a vocalista, mas não conseguia. Às vezes tinha a impressão de nem sequer saber como era sua voz, com certeza não era a mesma que ouvia em sua cabeça quando imitava os vocais líricos das musicas que adorava. Ela passa a catraca giratória da estação e sobe os degraus, agora apenas mais uns quatro blocos ate o Café du Monde, onde iria dar um turno de serviço.
Chega ao local de trabalho no final da musica. Desliga o player como se desligasse a fantasia e voltasse pra realidade.

Entra no café pela entrada de funcionários, vai ate o seu armarinho, tira o seu casaco preto, coloca o player na bolsa que carregava, arruma os cabelos pretos, retoca um pouco a maquiagem, mas pra seguir uma harmonia com o tom do cabelo do que pra parecer um pouco mais bonita. E ela era linda. Absolutamente uma menina linda. Uma mulher linda de lábios finos e definidos. De nariz pequeno e levemente empinado. De sobrancelhas expressivas. Chamava a atenção dos clientes, mas nunca respondia as suas investidas, as cantadas eram freqüentes, algumas sutis e criativas, outras nem tanto. E quem disse que o homem francês é um romântico?

Entrega Cafés e bolinhos, e tortas e torradas, e sucos e refrigerantes. E lava o rosto com cuidado pra não borrar a maquiagem. E aceita passivamente os toques indelicados de alguns clientes mais afoitos. Não gosta daquilo, mas precisa do trabalho. A sua arte, a pintura ainda não servia para pagar suas contas.

Alguns de seus colegas a acham esquisita, já tentaram conversar porem ela não demonstra interesse em conversas. Parece viver seu mundo quando escuta musica, algo alem disso, a realidade por assim dizer, não faz parte da vida dela. É apenas um mecanismo para suprir suas necessidades básicas. Comida, luz, telas e tintas.

Seu turno termina ao final da tarde. Ela pega o seu casaco no seu armarinho e o põe sobre o seu uniforme amarelo e azul, o mais feio uniforme de garçonete do mundo. Caminha de volta os quatro blocos ate a estação, já ao som de seu player digital, desta vez tocando Theater of Tragedy a faixa “As The Shadows Dance”. Adorava essa musica.
O caminho de volta pra casa parecia mais lento que a ida ao trabalho, aproveitava pra admirar a decadência da cidade do amor... ah Paris! Cidade do amor. Nunca me trouxe um outro amor. Apenas me tirou o único que já tive. Era o que pensava Catit ao ver um casal se acariciar na estação.

Morava sozinha, a mãe estava em Amsterdã com o padrasto, haviam se mudado por conta do trabalho dele. O Pai havia cometido suicídio ao saber do romance da mãe com o atual padrasto. Isso as afastou muito mãe e filha. Queriam Catit por perto, mas ela não quis ir morar em Amsterdã. Quis permanecer em Paris. E assim ficou. Sozinha em seu apartamento minúsculo.

Agora ouvia Placebo, uma banda um pouco fora da órbita do estilo que apreciava, mas adorava a musica “Centerfolds” deles. Ate arriscava cantarolar essa em especial: - “Camom Balthazar i refuse to let you die”. Entoava-a baixinho.

Desce em sua estação e caminha de volta pra casa. Pensa na arvore distorcida e de raízes grandes, que somente agora percebeu. Pensa em eterniza-la em uma de suas telas escuras. Ainda tinha certeza que aquela arvore não estava antes naquele local. Caminha em direção a ela. Analisa suas raízes. Pensa que elas parecem uma cama confortável, toda negra e úmida. Talvez não tão confortável. Toca o tronco e sente a aspereza da superfície, um dos galhos parece querer tocar a pele de Catit, em especifico a pele do rosto. Seus olhos se enchem de lagrimas. Ela sentiu uma tristeza ao tocar a arvore ainda maior que a tristeza de sua própria existência. Era como se as duas, ela e a arvore, fossem as criaturas mais tristes e solitárias do mundo.
Retorna agora pra casa, seu minúsculo apartamento, com a maquiagem inesperadamente borrada pelas lagrimas dos olhos. Ainda olha uma ultima vez para arvore e para os seus galhos, e para suas folhas opacas, e para as suas raízes expostas. Desliga o player digital ao mesmo tempo em que liga a música em seu som. Novamente “Cure” do Tristania. Ela caminha para geladeira e toma um outro copo de água gelada, se olha no espelho e cai aos prantos.

As lagrimas se confundem com o rímel que escorre. Ela sussurra algumas palavras. – “Oh mon dieu...”.

Agarra o seus pinceis e sua paleta, mas os atira ao chão em seguida. Abre uma lata de tinta preta e se aproxima de uma tela branca. Arremessa porções de tinta com as mãos e começa a esculpir o que em sua mente era a arvore que havia tocado lá fora. Outra cor, roxo e também tons marrom. Remexeu suas mãos por mais alguns minutos. Estava pronta a pintura. Não ainda faltava algo. E arremessa um punhado de tinta vermelha, que marca a tela como se fosse sangue. Agora esta pronto o seu ultimo trabalho.

Então caminha para a banheira, a água fria como a sua vida. Fria como suas emoções reprimidas. Como os acontecimentos do seu dia. Como a arvore do lado de fora, como o quadro que pintara. Ela entra na banheira e se acomoda. Então ao som da musica que se repetia pega uma faca que usava para abrir as correspondências, em sua maioria contas e cartas de sua mãe, clamando por noticias gostava de ler-las no banheiro. Ela passa a faca em um dos pulsos delicadamente, como se isso fosse possível. Para ela tudo era com grande e poderoso riff de guitarra.

Então a primeira gota mancha a limpidez da água. Vermelha era ela, e depois mais uma outra gota se junta à primeira. E pouco a pouco elas caem. Agora embebidas junto à água, apenas se misturavam e a tornavam turvas. Submerge então a cabeça. Ainda escuta a musica ao fundo. Sua vida não passa diante dos seus olhos como ela havia pensado que seria. O seu sopro de vida lentamente deixa de existir, a tristeza do seu coração é a sua única companhia nessa hora.

Por quê?

Nem mesmo ela sabia.

O fez e pronto.

Turvou a água límpida de vermelho.

Era tão branca como a porcelana da banheira.

Na água vermelha apenas seus joelhos ficaram pra fora.

No outro dia a musica ainda tocava no som...

O senhor Olivier da padaria ainda a esperava para lhe desejar o seu bom dia.

A arvore de galhos distorcidos, tronco áspero e raízes expostas, havia tombado do dia para a noite. Decepada como a vida da menina. Da mulher de vinte e poucos anos. De Catit.

Em seu funeral apenas a mãe, o padrasto e o senhor Olivier da padaria, que falava para a mãe da pobre menina:

- “Ela sempre me desejava um bom dia. Todos os dias”.

A mãe sorri.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Risadas e álcool (1ª Parte)

... e foi tão fácil, sem perigo.

- Sua boca é uma benção.
Sexo oral dentro do carro em uma rua deserta.

- 10 reais!
- Merece mais! – diz enquanto ri e puxa a cédula.

Ela abre a porta, sai do carro, limpa a boca e resolve ir pra casa.

O sol não dá trégua, ele entra em guerra constantemente contra a vontade deste homem. Ele anda lentamente enquanto os demais parecem estar na velocidade da luz. Esbarra, ‘me desculpe’. Mais um dia de andanças e mendicância. Vai pedir no sinal hoje, pois “a praça tem muita gente velha e lisa” e além do mais, ‘a concorrência tá aumentando, tem até moça bonita pedindo, assim num dá!”. Resmunga na própria mente as palavras que proferiu ontem em casa ( papelão estirado embaixo do toldo de uma padaria onde é o primeiro a comprar o pão). Sinal fechado.

- Uma esmola...
Um dedo indicando não, e outro, e outro, e outro...

- Uma esmola...
Dez centavos, depois trinta, depois vinte e cinco, depois oitenta. Um real e quarenta e cinco centavos em trinta segundos de sinal fechado.
- Uma esmola...

- Vai trabalhar!
Este homem todas as manhãs não sabe o que é bom humor, destila todo o seu veneno mal humorado em todos, nem mesmo a mulher em casa escapa, algo inadmissível, pois ela faz o café da manhã dele todos os dias; e este é o mesmo homem que, na noite anterior, achou ‘divina’ a boca de uma certa jovem. Esbraveja contra o velho pedinte, que uma vez já foi um padre.

- Não posso doutor... por favor – tenta arrancar pelo menos dez centavos do homem raivoso, só pra rir dele depois. Consegue. Aceita a moeda e pra mostrar a si mesmo que ainda tem orgulho deu essa moeda a outro que pedia perto dele.

- Obrigado. Esse aí tava puto hein...
Sinal fechado, o diálogo cessa. O mantra dos mendigos:
- Uma esmola...
Mais cinqüenta centavos. “Agora dá uma meota”, pensou. A taxa de câmbio, na bolsa de valores desse homem, é sempre calculada baseada na cachaça. Benze-se fervorosamente, lembranças da batina; e vai até o bar da mesma esquina, sua atual igreja. Onde os santos são fortes e ardentes

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

I

Sonhei que era Althusser antes do abismo da loucura. Cercado de mãos e olhos na loja de piano. Antes das mãos que estrangulariam a garganta da minha esposa. Pianos de cauda por todos os lugares, com homens de casaco ao meu lado sem rosto. Meus ombros pareciam encobri-los, e a vitrine da loja ao fundo com pedestres tão rápidos que se deformavam mais e mais. Mas tudo se iluminou. A luz jorrou no meu rosto e no meu peito. Minhas orelhas estavam brilhantes. Eles me seguraram. Meu rosto abriu-se a uma loucura de luz e chorei. Mas estava catatônico. Toda a cena era parada, em slides em preto-e-branco. Mas as pessoas lá foram mudavam e continuavam disformes. Os dois sujeitos ao meu lado seguraram meus pulsos, e amarraram minha cabeça com um pano cinza. Voltas e voltas em meu crânio como se atestasse na minha loucura a morte. Iluminei-me, como um anjo caído. Ali era a fronteira, entre os pianos de cauda. A fronteira da qual nunca mais voltaria. Era o abismo de luz. Um portal de luz no qual estava minha mulher deitada na cama, com marcas de dedos na sua garganta. Acordei.

“Sempre pensei J. que a única eternidade da vida é a morte. Continuo certo disso. O fato único de qualquer vida é o momento da morte. Não importa como você leve sua vida, não importa onde, não importa com quem, mas a morte vem para todos, sem distinção. Então J., digo a você que seus escritos têm muita vida, mas esquecem que a morte é o resultado natural de todos esses dramas ou alegrias. Pense nisto J. Declaro, portanto, que você vai morrer.”

Cruzei as portas. É só o que digo a mim nessa manhã. Cruzei as portas. O retorno talvez seja pelo mar de larva. Meu colchão está tomado por ele. A vida não pode mais ser aqui. Nunca pode, mas certamente agora é insuportável. Cruzei a fronteira de luz, Althusser. Não matarei minha esposa, não matarei ninguém. Mas o abismo de luz foi cruzado. Agora não me resta mais esperar. Nunca mais esperar. As horas não são mais horas, pois elas perdem o sentido quando o tempo não pode ser mensurado. O tempo agora é o tempo do espaço infinito, e minha locomoção é a das partículas na liberdade da comunhão do céu. Esqueço as portas. Elas nem sequer mais merecem ser lembradas. Levanto agora e narro meus passos até o banheiro. Althusser, porque sonhei com tua loucura? Por que teus dedos estranguladores não saem da minha mente? Por que o pescoço belo e branco da tua esposa parece roçar nos meus lábios? Quis beijar seu pescoço, mas teus dedos o encobriam. Não pude Althusser. Beijei teus dedos quentes. Agora o dia é você. Você foi o passo final para cruzar a porta. Mas sei que nada devo a você. Tua história não me impressiona. Mas a loucura sim, Althusser. Ela me impressiona. Cruzei as portas. Cruzei as portas e o chão é mar de larvas. Vou ao banheiro, portanto. Chego ao piso, e olho agora este homem sem casa. Olho agora esta cabeça que começa a ficar calva. Olhos esta barriga que não mete a minha preguiça. Olhos meus dias. Meus dias que o tempo os arrastou. Olho a privada. Papel? Mente aberta ao todo dessas palavras? Pego a toalha e seco minha pele molhada de suor. Olho novamente no espelho. Não, nada mudou. Nunca muda quando nós estamos vendo, mas de repente chega uma manhã na qual as olheiras estão tão grandes como um vazio negro que se expande. Um vazio que parece tomar nossa visão. Minhas olheiras hoje são dois barcos tristes, dois barcos sozinhos, dois barcos que não se encontram e que nunca nada acham. Minha pele parece a cortina velha da minha casa ou a parede da casa da minha mãe. Amarela, velha. Mas não sou velho. Nunca fui velho. Abro o chuveiro, então. Molho-me. Primeiro o pé sempre. Mas hoje decidi molhar a cabeça logo.

MERLEAU-PONTY E MICHEL ONFRAY: ENSAIO COMPARATIVO ENTRE DUAS FILOSOFIAS DO CORPO


Yuri Mourão Falcão




RESUMO

O objetivo deste ensaio é fazer um diálogo entre duas filosofias que ressaltam o corpo nas suas análises. Embora diferentes, o caráter de suas análises torna inevitável uma aproximação. Para Merleau-Ponty, o corpo é o modo fundamental de ser e de estar no mundo; visível-vidente, táctil-tocante, meu corpo se vê vendo, se toca tocando; não é uma máquina, nem um receptáculo de uma alma: eu sou o meu corpo.Para Michel Onfray, só há corpo, e este é exclusivamente material, e na sua obra, A Arte de Ter Prazer – Por um Materialismo Hedonista, essa concepção de corpo é virulentamente oposta ao ascetismo da razão.

PALAVRAS-CHAVE: Merleau-Ponty; Michel Onfray; Corpo; Materialidade.


MERLEAU-PONTY


Segundo Merleau-Ponty, o corpo, tanto em sua concepção mecanicista, quanto em sua concepção psicológica, resumia-se de fato a um objeto entre outros. Assim, “enquanto o corpo vivo se tornava um exterior sem interior, a subjetividade tornava-se um interior sem exterior, um espectador imparcial” [1]. Ambos os autores criticam a tradição descartiana, que separa mente e corpo, como veremos mais adiante.

Descartes havia defendido que os sentidos não são dignos de confiança, pois não trazem nenhuma marca da verdade. Mas para Merleau-Ponty, a cada instante no movi mento da existência estamos integrados ao mundo por meio do nosso corpo. Esta é a nossa condição. E, para compreendê-la, temos de reavaliar o fenômeno da percepção. Portanto, a atitude de Merleau-Ponty de questionar a percepção por si mesma tem por finalidade minar as bases que fundamentam essa desconfiança nos sentidos. Descartes acreditava que poderíamos possuir a verdade dos objetos pelo pensamento. Para Merleau-Ponty, ao contrário, a experiência da percepção é uma espécie de filosofia sem palavras que nos revela o caráter enigmático do mundo. Em suma, pensar não é possuir a representação do mundo, mas se dirigir a algo que aparece – sempre com restrições. Pensar é perceber um mundo que a cada instante desvela seus perfis. É relacionar-se com um mundo ao qual estamos integrados e do qual não podemos nos separar. O mundo não se encontra disposto diante de um espírito desencarnado, que o contempla e assim o domina, pois o corpo é o lugar do mundo que nos permite percebê-lo e pensá-lo. Portanto, aquilo que a tradição consagrava exclusivamente à consciência é experimentado no corpo: entrelaçado ao mundo, o corpo vê e é visto, e se vê vendo, toca e é tocado, e se toca tocando[2]. É uma interioridade exteriorizada, e uma exterioridade interiorizada. “O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles” [3].

A carne é um conceito singular para Merleau-Ponty, afirmando que ela é fundamental para a filosofia, porque não se trata da idéia de um corpo objetivo pensado a partir de uma alma e porque rompe com a separação entre sujeito e objeto. A carne não é nem matéria, nem espírito, nem substância:

Seria preciso, para designá-la, o velho termo ‘elemento’, no sentido em que era empregado para falar-se da água, do ar, da terra e do fog, isto é, no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espácio-temporal e a idéia.[4]

O pensar advém da carne que é um elemento de coesão entre as coisas que não é nem matéria, nem substância, nem espírito: “consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente”.[5]
Para Merleau-Ponty, o corpo, ao projetar-se, “cava no interior do mundo pleno no qual se desenrola o movimento concreto, uma zona de reflexão e de subjetividade, ele sobrepõe ao espaço físico um espaço virtual ou humano”[6], havendo, portanto, uma simultaneidade entre o movimento abstrato e o concreto, pois eles partilham de uma estrutura comum – a relação do homem ao mundo – não podendo ser vistos como realidades diversas: corpo e consciência não são, respectivamente, o concreto e o abstrato, já que se houvesse apenas o corpo compreendido como mecanismo, todo movimento seria concreto; e se houvesse apenas a consciência como puro saber absoluto, só haveria movimento abstrato.

A simultaneidade dos movimentos implica, por um lado, que a consciência seja efetivamente, não pondo sua situação como objeto, mas sendo com ela, tornando-se por isso mesma aberta e vulnerável; por outro, que o corpo seja ele próprio uma abertura, uma referência ao possível, negatividade e não existência em si. Preservar a diferença entre o concreto e o abstrato e a presença em ambos do corpo e da consciência equivale, enfim, a afirmar que estes são e não são ao mesmo tempo.[7]

A distinção entre o concreto e o abstrato não pode ser buscada na separação entre corpo e alma, e sim no reconhecimento de que “(...) para o corpo existem várias maneiras de ser consciência”[8]. Se o corpo implica a recusa de que todo sentido provenha de um Eu puro, e a afirmação da junção do sentido à existência, é porque o corpo é, ao mesmo tempo, sentido e materialidade. “Ser corpo é realizar a mediação entre a intenção e a efetividade, realizar a mediação entre a intenção e a efetividade, o não ser e o ser, operando a dialética entre o para si e o em si”[9].

Marilena Chauí observa:

A experiência é cisão que não separa – o pintor traz seu corpo para olhar o que não é ele, o músico traz seu corpo para olhar o que não é ele, o escritor traz a volubilidade de seu espírito para criar aquilo que se diz sem ele – e é indivisão que não se identifica – Cézanne não é a montanha Santa Vitória, Mozart não é a Flauta Mágica, Guimarães Rosa não é Diadorim. A experiência é o ponto máximo de proximidade e de distância, de inerência e diferenciação, de unidade e pluralidade em que o Mesmo se faz outro no interior de si mesmo[10].

Portanto, para Merleau-Ponty, as idéias e os pensamentos vinculam-se como experiências da carne, mas que são invisíveis. É o avesso do visível; é uma outra carne, mais leve, transparente. Esse invisível, não é invisível de fato, mas um invisível existencial. A carne do mundo não se confunde com nossa própria carne, mas é através daquela que compreende o corpo, assim como o corpo sensível não é o corpo sentiente. O corpo sensível é o que percepciona, enquanto o corpo sentiente é a reflexão do corpo em si, ou seja, tocar e ser tocado concomitantemente. A percepção é, portanto, um paradoxo, pois existe o lado que se percepciona e o lado que não se percepciona, mas que está ali:
Não vemos nem ouvimos as idéias, nem mesmo com os olhos do espírito ou com o terceiro ouvido: no entanto, ali estão, atrás dos sons ou entre eles, reconhecíveis na sua maneira sempre especial, única, de entrincheirar-se atrás deles(...)[11].

Meu corpo tem, portanto, como todos os entes, uma dimensão metafísica ou ontológica. Devemos nos deter aqui por um instante. Em que medida a filosofia de Merleau-Ponty comporta uma metafísica? Para evitarmos generalizações e críticas infundadas, temos que analisar sua crítica à metafísica clássica. Esse é o ponto-chave do nosso ensaio, pois nele as duas filosofias do corpo analisadas aqui divergem mais profundamente.

Merleau-Ponty pretende revisar as categorias e antinomias da metafísica clássica, como essas entre "sujeito" e "objeto," "interior" e "exterior," "objetivo" e "subjetivo" - todas derivadas da filosofia moderna -, que estabelecem de início direções e limites no tratamento da questão da relação entre corpo e alma. Merleau-Ponty procura outra via de análise que não essa estabelecida pela filosofia cartesiana, na qual corpo e alma representam duas realidades de natureza distintas, que tornam incompreensível a sua união. Na sua obra A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty destaca os limites da psicofisiologia, destacando o reducionismo, o atomismo, o dualismo, o mecanicismo dessas análises. Para a superação desses limites propõe, como solução, uma analítica transcendental, por meio do qual o organismo passaria a ser analisado como um todo intencional inseparável do mundo. Não se deve analisar o fenômeno do comportamento pela suposição de que uma alma habita o corpo. Mas que se faça sem pressupor, em contrapartida, que aí não haja "alma" alguma, sem estabelecer, portanto, uma definição de corpo e de comportamento como negação de um termo que se considera problemático: "alma," "espírito" ou "consciência." O objetivismo pode apenas apontar para as estruturas físicas como condições sem as quais não se dá o fenômeno da percepção, mas não pode explicar a percepção, nem mesmo a fisiologia do organismo,

através desses fatos ou estruturas físicas, porque tanto um quanto outro representam ordens originais de fenômenos, distintas da ordem do fenômeno físico. O comportamento não é uma coisa, mas também não é uma idéia, ele não é o invólucro de uma pura consciência e, como testemunho de um comportamento, eu não sou uma pura consciência. É justamente o que nós queremos dizer afirmando que ele é uma forma.[12]

Em síntese, se o idealismo preserva a especificidade da consciência, é incapaz de compreender a sua inserção no mundo, se vincula à consciência a possibilidade de todo sentido, “é incapaz de apreendê-la enquanto situada, em estado nascente”[13]. Vemos aqui a idéia de consciência encarnada; a impossibilidade de um consciência pura, capaz de apreender o mundo em sua totalidade, e de um corpo resumidamente orgânico, feixe de músculos, ossos, células em geral.

Não se trata, pois, de recusar o naturalismo da consciência (a sua redução objetivista) simplesmente afirmando uma sede de subjetividade pura - possibilidade de todo fenômeno -, aquém da ‘promiscuidade e confusão’ entre corpo e alma, consciência e mundo, mas trata-se de ‘compreender como a consciência se apercebe ou se mostra inserida em uma natureza’[14].

O desenvolvimento da filosofia de Merleau-Ponty instaura o rpimado da corporalidade essencial da consciência. Nesse sentido, seu pensamento contrasta com a ontologia dualista das categorias corpo e espírito de Descartes. É isso que permite produzir uma filosofia do e pelo corpo. “(...), compreendido como fusão de sentido e existência, o corpo deixa de ser um objeto, um em si e passa a ser expressão do vínculo orgânico existente entre o ser e o nada”.[15]

Portanto, a filosofia pontyana traz uma noção que recusa ao mesmo tempo a concepção mecanicista do corpo e a concepção intelectualista de consciência.



MICHEL ONFRAY – A APOLOGIA DO NARIZ


A obra de Michel Onfray que analisaremos aqui (A Arte de Ter Prazer – Por um Materialismo Hedonista) é povoada de imagens propostas pelo autor que nos indicam a posição ocupada pelo corpo na sua filosofia. O livro começa com uma descrição-exemplo de seu enfarte, aos vinte e oito anos de idade:

Meu corpo parecia se escoar por uma fenda talhada a navalha naquilo que eu sentia como o avesso do meu coração. A brecha engolia minha carne, meu sangue e tudo o que pudesse apresentar-se sob forma de alma. Os músculos se retesavam até a tetanização, a mineralização, e o ritmo cardíaco se transformava em estridências. A consciência desaparecia naquele apocalipse que se tornava seu único objeto; eu já não era mais que uma imensa dor acompanhada de contorções, buscando desesperadamente uma posição aplacadora.[16]

O capítulo é intitulado de: Genealogia da Minha Moral. Seu enfarto é posto pelo autor como uma experiência fundante: “meu corpo experimentou uma sapiência que se transformaria em hedonismo.”[17] Do início ao fim, essas imagens percorrem as páginas para exemplificar, com a maior crueza possível, o lugar do corpo nas filosofias analisadas por ele e na sua própria. Aroma de esperma, lodo, lama, anjos atados a cadeiras, a batalha do falo contra o ascetismo, e, por fim, cadáveres abertos para estudos anatômicos. A filosofia de Onfray é uma batalha sem a politese acadêmica, opondo o nariz – que no sistema de castas do corpo ocupa o lugar de paria – à razão ascética. Existem duas referências principais no seu livro: La Mettrie e o Marquês de Sade. Suas obras, suas vidas, exemplificam muitos dos pontos abordados por Onfray no seu materialismo hedonista. Se não há, como criticam alguns, uma apresentação sistemática da sua filosofia do corpo, sendo apresentada em críticas a uns e elogios a outros, Onfray traça um caminho extremamente fértil para uma filosofia do corpo.

“Uma carne habitada pelo entusiasmo, pela desordem e uma estranha parcela que lembra a loucura, a histeria, a possessão, é o que parece excêntrico, incongruente”.[18] Exemplo maior de sua filosofia do corpo é o que ele chama de “hápax existenciais”: experiências radicais e fundadoras que fazem surgir do corpo êxtases, visões, gerando revelações que se configuram como concepções de mundo coerentes e estruturadas. “A tensão habita a carne longamente. O corpo é um estranho lugar em que circulam influxos e intuições, energias e forças”.[19] Eis o corpo: cadinho de experiências para o filósofo, lugar percorrido por energias. Citando Bérgson:

“A matéria e a vida que enchem o mundo também estão em nós; as forças que atuam em todas as coisas, sentimo-las em nós; seja qual for a essência íntima do que existe e do que se faz, nós fazemos parte dela.”[20]

Essas experiências fundantes, os hápax existenciais, que transformam a energia que habita o corpo longamente e que se configura em concepções de mundo dão-se através da intuição.

‘Intuição’, escreve (Bergson) em O pensamento e o movente, ‘significa em primeiro lugar consciência, mas consciência imediata, visão que mal se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e até mesmo coincidência’.[21]

. Levando em conta as noções dinâmicas de Bergson – como elã vital, trocas de tensão e energia – Onfray vê o pensamento como proveniente diretamente do corpo:

O pensamento é um produto da carne que sofre e que registra as menores vibrações da existência, resulta de um compromisso com forças que dinamizam o organismo com a finalidade de evitar a fratura, a quebra, a loucura, o desequilíbrio.[22]

Critica a negação do corpo por um racionalismo que não aceita que o pensamento provenha do lodo do corpo. Nesse sentido, Onfray evoca o nariz: as narinas conduzem ao cérebro primitivo e não deixam de associar fortemente os eflúvios à sexualidade. Levantar-se contra o olfato é ao mesmo tempo recusar o corpo em suas exigências mais imperiosas.

(...), aos odores é atribuído um coeficiente de a-socialidade, do mesmo modo que à volúpia, ao erotismo e à sexualidade de que ele participam. Por conseguinte, coloca-se como antagônico o entendimento, capaz das mais impalpáveis proezas conceituais, donde a depreciação do faro, por definição incapaz de abstração e de contribuição ao puro conhecimento[23]

. Recalcando esse sentido, os filósofos fazem o elogio da visão e dos sentidos que instalam as imagens e os sons como únicas modalidades apresentáveis da relação com o mundo. Tudo que lembra a situação do homem enredado na natureza é apagado. “Os sentidos são, portanto, os princípios do contato do indivíduo com o mundo que o cerca”[24]. Na relação entre a matéria e o comportamento, entre o corpo e os pensamentos, o olfato alcança a dimensão essencial de modalidade do que os contemporâneos chamariam de estar-no-mundo. “Cheirar é compreender”[25]. Evocando a imagem do anjo para exemplificar o ascetismo da cultura ocidental:

Antimatéria, antes de mais nada, o anjo é livre dos imperativos de tempo e de espaço, de finitude e de composição ou de movimento(...) Se é difícil imaginar um anjo saboreando uma teta de leitoa recheada no festim de Trimalcião, sabe-se, por outro lado, que eles se nutrem de maná, um alimento fabricado especialmente por Deus para satisfazer os filhos de Israel perdidos no deserto (...) Nada de charcutaria para o inefável[26].

A consciência não é exterior ao corpo: é uma das modalidades deste. Ela é do corpo, o que melhor exprime as veleidades apolíneas de ordem. Pela consciência se tecem as formas com que a energia se faz carne. A consciência seria, portanto, uma modalidade do corpo, que capta as energias, os influxos, provenientes do corpo, transformando-as, dando sentido a elas. A consciência informa as potencialidades vitais do corpo para concentrá-las em ações, condutas, comportamentos.

A consciência é o instrumento com o qual se pode produzir um estilo, mostrar uma maneira original e singular de dar forma a suas virtualidades. Por esse exercício, os homens se distanciam da bestialidade, afirma sua excelência. [27]

. O cérebro age como um filtro que decodifica o prazer, lhe dá sua plenitude e sua forma intelectual. A filosofia de Onfray desemboca no prazer como aceitação da materialidade do corpo, propondo um hedonismo como filosofia. Uma carne capaz de erotismo e de gastronomia, de estética e de música, de sensações táteis e olfativas.

Com o prazer como fio condutor da ética, ‘o homem já não é artista, é ele próprio obra de arte’. Um corpo artístico, estético é pois necessário: contra os anjos e suas tentações brancas, seus modelos translúcidos, a carne deve tornar-se virtude[28].

Na galeria dos hedonistas encontram-se bêbados, sodomitas, monges e monjas ateus, sonhadores de cidades ideais, devoradores de esperma, poetas que morrem de indigestão, travestis. São eles quem professam o ateísmo, o materialismo, o estetismo, o vitalismo. Sade, a principal referência no livro de Onfray, e sua escola da libertinagem são bastante explorados na parte do livro que se intitula Virtudes: “Fode, em suma, fode; é para isso que vieste ao mundo; nenhum limite ao prazer a não ser o de tuas forças ou de tuas vontades; nenhuma exceção de local, de tempo ou de pessoa; todas as horas, todos os lugares, todos os homens devem servir a tuas volúpias; a continência é uma virtude impossível”[29]. Para Sade, o indivíduo é uma máquina submetida a essas leis e nada pode fazer com que ele esteja sob autoridade que não a do necessário. “A matéria é um tirano imperioso que submete o real a seus princípios”[30]. La Mettrie, outra importante referência, diz que a carne é o lugar em que se faz o pensamento, também é o composto de matéria atravessado por desejos e prazeres. O corpo é uma máquina de gozar e de sofrer, e é impossível agir sobre o seu funcionamento.

A alma não é mais do que um princípio do movimento, ou uma parte material do cérebro, que se pode, sem temer o erro, considerar como uma mola principal de toda a máquina, que tem uma influência sobre todas as outras. [31]

. O materialismo hedonista de La Mettrie supõe uma exarcebação da presença no mundo, uma adesão plena e inteira ao que constitui a substância do real.

O livro de Michel Onfray não é um tratado tedioso sobre o corpo, mas, muitas vezes, uma prazerosa narrativa do prazer. Não estabelece tópicos sobre especificidades do corpo, da relação corpo e forma, corpo e consciência, fisiologia, mas nos proporciona insights incrivelmente férteis sobre a materialidade e a possibilidade de uma filosofia renovada. Digamos que Michel Onfray tem não uma idéia, mas uma intuição: a materialidade do corpo, o prazer contra o ascetismo da razão, as múltiplas formas da matéria. Evocando Sade e sua escola da libertinagem, o autor nos mostra o prazer em seu extremo: nunca combatido como demasia ou desrespeito à vida, mas apenas como diferenças de intensidade... Mas, pensando numa moral que adota o imperativo do prazer, o autor nos propõe que, com o fogo de Sade, devemos apenas nos aquecer.

Quando está decidido que se pode fazer do gozar e fazer gozar um imperativo categórico hedonista, põe-se em funcionamento uma estratégia que permite a emergência de virtudes – as virtudes do júbilo.[32]

. O hedonismo é o grande sim à vida que Nietzsche clamava.



CONCLUSÃO

Embora não possamos analisar esses autores mais apuradamente, suas filosofias nos proporcionam a discussão da materialidade. Contra a dicotomia descartiana, o corpo: não mais a materialidade grosseira, a prisão da mente, mas a nossa condição neste mundo. Não há mais nós e o nosso corpo: nós somos o nosso corpo. Dois pensadores essenciais para uma filosofia que pretenda pensar o corpo.

[1] MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da Percepção. Editora Martins Fontes, São Paulo, 5ª ed. 2006, p 88.
[2] CHAUÍ, Marilena. Revista Cult. Nº 123, ano 11. Merleau-Ponty: a obra fecunda. In: Merleau-Ponty – “a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”.
[3] MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da percepção. Editora Martins Fontes, São Paulo, 5ª ed. 2006, p 122.
[4] Ibidem, p.136
[5] CAMPOS MOURA DE, Alex. A relação entre Liberdade e Situação em Merleau-Ponty, sob uma perspectiva Ontológica. http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2006_mes/alexcamposmoura.pdf
p. 43.
[6] MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da Percepção. Editora Martins Fontes, São Paulo, 5ª ed. 2006, p 160.
[7] CAMPOS MOURA DE, Alex. Op. cit. P.43
[8] MERLEAU-PONTY, Maurice. Op. cit. P. 175.
[9] Idem.
[10] CHAUÍ, Marilena. Op. cit. p. 47.
[11] VIVIANI, Ana. O corpo glorioso: um diálogo entre Merleau-Ponty e Michel Serres. http://www.compos.org.br/files/25ecompos09_AnaViviani.pdf
[12] Merleau-Ponty, cit, por Furlani.
[13] Idem.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] ONFRAY, Michel. A arte de ter prazer – por um materialismo hedonista. 1º ed. São Paulo: Martins Fontes. p. 13.
[17] Idem.
[18] Ibidem, p. 29
[19] Idem.
[20] Ibidem, p. 35.
[21] Ibidem, p. 34.
[22] Ibidem, p. 49.
[23] Ibidem, p. 123.
[24] Ibidem, p. 114.
[25] Ibidem, p. 115.
[26] Ibidem, p. 129.
[27] Ibidem, p. 170.
[28] Ibidem, p. 225.
[29] Ibidem, p.285.
[30] Ibidem, p.279.
[31] Ibidem, p. 274.
[32] Ibidem, p. 311.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

MULUNGU

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Minha Pátria são meus Amigos e a capital é Mulungu.


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quarta-feira, 30 de julho de 2008

Criança-graxa

O pivete engraxate engraxa meus chinelos
Suja meus pés da cor preta de sua labuta juvenil
Passa por mim outro, invejoso do outro que me engraxa os chinelos
Ri de mim, e bate na latinha de graxa
Meus pés pretos, chinelos pretos, engraxados
E outros esperam de chinelos para o ar
A criança-graxa pergunta:
“Porque não usam mais sapatos?”
Olho pra ele e penso:
“Por que?”
Ele, de cabeça baixa, cantarola algo lustroso.
Canta e nem escuto. Sinto apenas a graxa fria em meus pés.
E o banco da praça quente em minhas nádegas
Hemorróidas nascerão do calor praciano.
O miúdo ser suado para a cantoria, e pergunto:
“O que tu canta?”
Ele: “sei lá moço, uma música de meu pai”.
Eu: “teu pai é cantor?”.
O pivete-engraxate-menino-de-rua disse e aponta:
“Ele é aquele pastor ali cantando música de deus”.


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terça-feira, 22 de julho de 2008

Derci



Sua Puta. Por que você morreu?
Droga! Merda!
Por que Derci?
Puta que pariu! Ela Morreu!
Vamos todos nos foder agora
Sem a sua vida livre e feliz
Uma vida de foder
Uma vida sem papas na língua.

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sábado, 19 de julho de 2008

Deportação ( 'eles'* não mudaram muito)

*'eles': as autoridades européias.
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Deportação. Bom, muitos retornam de seus sonhos de férias em países europeus. Porque será? Porque são maltratados. Eles não maltrataram os povos sul americanos há tanto tempo? Que o diga os povos primitivos. Extermínio. Etnocídio. Agora isso se chama 'deportação', a maneira como essas culturas ditas 'sofisticadas' e modelos de civilização mundial lidam com os povos de suas antigas colônias. Liberté, Igualité e fraternité (nem sei se a escrita está certa, mas compreendem que nada disso está acontecendo, não compreendem?). Por isso vá e apaixone-se pela cultura ( a européia) que sempre pensou ter, por direito, a conquista dos outros povos. Vá para aqueles que se consideram o centro irradiador do progresso civilizatório. Vá.

Na verdade, e digo sem pestanejar, eles é que deveriam vir até nós (povo que resultou das colônias) e aprender como ser alguém menos 'europeu' (mas que venham despidos de seus shorts e camisas de verão e suas câmeras com zilhões de gigas de memória, não queremos turistas babacas que nem ligam para o povo que visitam). Vá para os que sempre nos consideraram bárbaros. E não é ressentimento de latino-americano oprimido pelas potências do norte, nada disso; é apenas consciência de um homem que não se enfeitiça fácil pelos encantos dos povos 'supeirores' e sofisticados. Vá, mas mantenha os olhos e ouvidos atentos (saiba pelo menos o idioma deles, pra entender que zombam da sua cara). E me dá vontade de entrar em todos os países sem precisar de passaporte ,visto ou qualquer outra permissão; porque o mundo é o meu país ( e de todos) e eles, nem niguém, podem impedir os moradores de caminharem em sua própria casa.

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sexta-feira, 11 de julho de 2008

CONTRA-PUTA

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"O poeta é um marginal desde que foi expulso da república de Platão."(Roberto Piva)

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Contra-Puta

Puta de 75 anos de idade
30 reais o programa
Uma mulher à 60 anos vivendo da prostituição
“E outros serviços domésticos”, como ela mesmo diz
Rosinha,
De nome verdadeiro Olga
Na praça da Sé, São Paulo
Não vá rir por ela conseguir clientes
Ela consegue
A contra-puta, aquela que não precisa ser deslumbrante
Luxuosa. Nada de glamour, noites de rainha
Nem de néon em uma boite ‘chic’
Puta de rua, velha, sim
Velha e vivida, dona de uma vida que esmaga qualquer outra que a desafie
Louvem esta mulher, paguem o programa
E voltem para suas casas e beijem a bandeira do Brasil.


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quarta-feira, 2 de julho de 2008

(UM TEXTO SEM TÍTULO)

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Um texto sem título é este que voçê vai ler. Na verdade já começou, então vamos ao que interessa logo: a conclusão. Pois leitores dos nossos tempos não se preocupam mais com o enredo, a trama, o desenrolar da história; querem logo é o final delas, o que vai acontecer. Pois para frustração de todos direi que história alguma tem fim. Como? Muito simples, toda história tem um começo, até aquelas ficções que começam supostamente pelo fim, portanto é de se imaginar que terá um meio e depois um fim propriamente. Engano, não se encerra ali a história que voçê leu, ela perdura em sua memória, “mas o personagem conseguiu vencer”, sim ele venceu; mas quantas batalhas ele terá ainda que enfrentar, o que ele vai fazer de sua existência da sua vitória em diante? Uma história só fenece se não compreendermos que ela é incompleta; não há na história de um texto a completude plena, há sempre lacunas propositais e despropositais também; as lacunas propositais são características dos autores provocadores que colocam justamente a lacuna onde deveriam colocar sua peça principal, deixar subentendido a idéia principal e passível de interpretações é uma forma de demonstrar que sua história terá tantos fins quanto interpretações; já as lacunas despropositais são aquelas geradas instintivamente ou por falta de habilidade do autor, na verdade são geradas pelas duas características porque o autor inábil em inserir lacunas propositais quando as consegue inserir foi por inabilidade e por instinto(inconsciência de tal uso), portanto haverão lacunas e incompletudes em todos os textos que vocês lerem. Inclusive este em que eu disse que anunciaria logo a conclusão, mas não o fiz em nenhum momento. “Mas então, qual a conclusão?” Se voçê se perguntar isso então não entendeu nada do que eu quis dizer.

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domingo, 29 de junho de 2008

Aos Gênios.

*
Gênio

Gênios. Quem define quem é ‘Gênio’? Alguém mais genial que ele? Ou alguém medíocre que, por se tão inferior, considera alguém um pouco mais ‘iluminado’ um gênio? ‘Gênio’ nos dicionários significa "indivíduo de extraordinária potência intelectual”, mas quem mede tal potência? Ora, é o próprio homem. Muito suspeita essa avaliação não acha?

E em que aspecto alguém é considerado gênio? Einstein, por exemplo, foi considerado genial por todos. Mas não podemos perder o senso crítico de que suas descobertas e pesquisas também trouxeram malefícios. Não preciso citar(mas é dever meu lembrar) o quão desastrosa foi a utilização de suas descobertas. Não estou aqui culpando Einstein, mas apenas observando de um outro ângulo o conceito que criamos de Gênio, pois ‘gênio’ na cultura antiga “era um espírito benéfico ou maléfico, que presidia o destino de cada um, das cidades e era responsável pelo desencadear de determinados fatos”. Então questiono, não foram determinantes para a destruição de Hiroshima e Nagasaki as descobertas de Einstein? Pois é, um gênio. Novamente ressalto que não culpo diretamente aquele bom homem(sua intenção não era tão maléfica), mas quero expor a idéia que a genialidade é um conceito a ser avaliado.

Qual a genialidade em se destruir milhares de vidas em tão pouco tempo? Não seria mais genial descobrir como sustentar e distribuir a produção de alimento com os milhares que não tem o que comer? Cadê o Gênio que não formulou essa idéia ainda? Será que em meio à 6 bilhões de seres humanos, um sequer, não tenha essa capacidade? Ou outros 6 bilhões devem nascer para termos alguma esperança? Desconfio que todo ser que nasce é um gênio, pois cada um é responsável pelo desencadear de seus fatos históricos. Claro que alguns gênios afetam os fatos em escalas diferentes. Alguns afetam em escala mundial, outros em escala local, mas até mesmo esse ‘gênio local’ desencadeia um fato dentro do mundo, pois faz parte dele. Então, quem não é um Gênio nesse mundo?

O que cabe aos seres humanos é escolher como utilizar essa ‘genialidade’, ou até não usá-la caso seja prejudicial, e conseqüentemente o fato de não usá-la ( se for prejudicial) seria uma idéia mais genial ainda. Não teria sido Einstein um gênio muito maior se resolvesse não ter revelado completamente suas idéias? Sei que é contra a iluminação do conhecimento negar o que se descobre aos outros. Como propagador de idéias me é avessa essa proposta, mas creio que aqueles que morreram em Hiroshima e Nagasaki, concordariam com ela. E quantos agradeceriam pela não invenção das diversas armas? Aqueles que já morreram por causa delas certamente nos diriam um "muito obrigado" se pudessem sair de suas covas.

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O que é 'coisa'?

"Nossa primeira verdade - aquela que nada prejulga e não pode ser contestada - será que há presença, que 'algo' lá está e lá está 'alguém'. Antes de passarmos ao 'alguém' perguntemo-nos, pois, o que é o 'algo'. Este algo a que estamos presentes são (serámos tentados a dizê-lo) 'as coisas', e aparentemente todos sabem o que se deve entender por isso."

(Maurice Merleau-Ponty, no seu livro: O Visível e o Invisível).


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