quinta-feira, 21 de agosto de 2008

I

Sonhei que era Althusser antes do abismo da loucura. Cercado de mãos e olhos na loja de piano. Antes das mãos que estrangulariam a garganta da minha esposa. Pianos de cauda por todos os lugares, com homens de casaco ao meu lado sem rosto. Meus ombros pareciam encobri-los, e a vitrine da loja ao fundo com pedestres tão rápidos que se deformavam mais e mais. Mas tudo se iluminou. A luz jorrou no meu rosto e no meu peito. Minhas orelhas estavam brilhantes. Eles me seguraram. Meu rosto abriu-se a uma loucura de luz e chorei. Mas estava catatônico. Toda a cena era parada, em slides em preto-e-branco. Mas as pessoas lá foram mudavam e continuavam disformes. Os dois sujeitos ao meu lado seguraram meus pulsos, e amarraram minha cabeça com um pano cinza. Voltas e voltas em meu crânio como se atestasse na minha loucura a morte. Iluminei-me, como um anjo caído. Ali era a fronteira, entre os pianos de cauda. A fronteira da qual nunca mais voltaria. Era o abismo de luz. Um portal de luz no qual estava minha mulher deitada na cama, com marcas de dedos na sua garganta. Acordei.

“Sempre pensei J. que a única eternidade da vida é a morte. Continuo certo disso. O fato único de qualquer vida é o momento da morte. Não importa como você leve sua vida, não importa onde, não importa com quem, mas a morte vem para todos, sem distinção. Então J., digo a você que seus escritos têm muita vida, mas esquecem que a morte é o resultado natural de todos esses dramas ou alegrias. Pense nisto J. Declaro, portanto, que você vai morrer.”

Cruzei as portas. É só o que digo a mim nessa manhã. Cruzei as portas. O retorno talvez seja pelo mar de larva. Meu colchão está tomado por ele. A vida não pode mais ser aqui. Nunca pode, mas certamente agora é insuportável. Cruzei a fronteira de luz, Althusser. Não matarei minha esposa, não matarei ninguém. Mas o abismo de luz foi cruzado. Agora não me resta mais esperar. Nunca mais esperar. As horas não são mais horas, pois elas perdem o sentido quando o tempo não pode ser mensurado. O tempo agora é o tempo do espaço infinito, e minha locomoção é a das partículas na liberdade da comunhão do céu. Esqueço as portas. Elas nem sequer mais merecem ser lembradas. Levanto agora e narro meus passos até o banheiro. Althusser, porque sonhei com tua loucura? Por que teus dedos estranguladores não saem da minha mente? Por que o pescoço belo e branco da tua esposa parece roçar nos meus lábios? Quis beijar seu pescoço, mas teus dedos o encobriam. Não pude Althusser. Beijei teus dedos quentes. Agora o dia é você. Você foi o passo final para cruzar a porta. Mas sei que nada devo a você. Tua história não me impressiona. Mas a loucura sim, Althusser. Ela me impressiona. Cruzei as portas. Cruzei as portas e o chão é mar de larvas. Vou ao banheiro, portanto. Chego ao piso, e olho agora este homem sem casa. Olho agora esta cabeça que começa a ficar calva. Olhos esta barriga que não mete a minha preguiça. Olhos meus dias. Meus dias que o tempo os arrastou. Olho a privada. Papel? Mente aberta ao todo dessas palavras? Pego a toalha e seco minha pele molhada de suor. Olho novamente no espelho. Não, nada mudou. Nunca muda quando nós estamos vendo, mas de repente chega uma manhã na qual as olheiras estão tão grandes como um vazio negro que se expande. Um vazio que parece tomar nossa visão. Minhas olheiras hoje são dois barcos tristes, dois barcos sozinhos, dois barcos que não se encontram e que nunca nada acham. Minha pele parece a cortina velha da minha casa ou a parede da casa da minha mãe. Amarela, velha. Mas não sou velho. Nunca fui velho. Abro o chuveiro, então. Molho-me. Primeiro o pé sempre. Mas hoje decidi molhar a cabeça logo.

1 Reações:

Davi disse...

Começa insano e termina com um pouco de juízo, só um pouco...

Texto com muitos pontos finais e recomeços,(sentenças curtas, mas em ciclo) dá uma sensação de respiração (expirar/aspirar).

Continuemos. Sem obrigações ou periodicidade, pois como bem disse: "O tempo agora é o tempo do espaço infinito, e minha locomoção é a das partículas na liberdade da comunhão do céu."