quarta-feira, 20 de maio de 2009

Esquina Certa

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… quando dobrou a esquina da rua tão conhecida em que viveu ela teve uma vontade de gritar. Não era possível! As casas estavam em lados contrários. O trezentos e sessenta estava do lado direito e o trezentos e sessenta e cinco do lado esquerdo; talvez tivesse tomado a outra esquina oposta, aquela que nunca entrava quando vinha do trabalho, mas não, ela estava justamente dobrando a esquina cotidiana em seu retorno para casa vindo do trabalho. No entanto tal absurdo de lados não a fez gritar de fato, ela continuou a caminhar, apesar dessa estranheza do cenário, mas que no fundo de sua memória era um ambiente familiar. Caminhando passou pelas casas e não apenas estas estavam do lado errado, seus moradores haviam invertido de morada, o tão conhecido Sr. Wilson estava sentado com sua cadeira de balanço na calçada da casa de número trezentos e sessenta e dois e para espanto mais fantástico o Sr. Wilson não era mais o velho de rosto magro e voz rouca, ele era um jovem de rosto roliço e voz grave e cantarolava uma canção que não foi entendida por ela e por isso não está descrita aqui. A casa dela ficava à poucos metros, então ela apressou os passos, mas teve um temor insuportável, ou melhor, a razão deu de presente para ela o pior dos raciocínios: ''se todas as casas estão do lado contrário e os moradores moram em casas diferentes e não são mais o que eram, os velhos são jovens, os maduros devem ser adolescentes, os jovens devem ser criancinhas, e as criancinhas são rescem-nascidos ou ainda estão no útero de suas mães.

. Então em meio a este perigoso presente (pois a razão pode ser um perigo, apesar de Descartes discordar disso), presente que os seres humanos chamam de raciocínio, ela preferiu agir de acordo com a realidade do momento numa espécie de razão ou desrazão utilitarista, ou numa fantasia que lhe pregava uma peça que não pertencia a quebra-cabeça algum. Assim, no momento em que quase pisava a calçada de sua casa ela voltou então o caminho que fizera e resolveu chegar na sua rua pela esquina oposta, aquela que nunca usava quando vinha do trabalho. Então fez um arrodeio no outro quarteirão e quando chegou a esquina que nunca usava quando vinha do trabalho ela sentiu o que chamamos de alívio, pois tudo estava exatamente como sempre for a onde sempre estivera. Assim ela caminhou confiante, deu boa noite ao Sr. Wilson quando por ele passou, chegou até a calçada de sua casa e pensou: ''eu, se tivesse continuado a caminhar em uma fantasia que invertia os lados do mundo e retrocedia o tempo talvez não pisasse na calçada de minha casa com os dezoito anos que tenho agora. ''

. Talvez ela tivesse perdido dezessete anos de vida ao continuar naquela fantasia que invertia os lados do mundo e retrocedia o tempo e em vez de estar de pé na calçada de sua casa ela estivesse engatinhando nesse mesmo lugar quando tinha apenas um ano; mas ela entrou em casa, pediu a benção a sua mãe e começou a escrever todas estas palavras para não esquecer que, de vez em quando, a vida é tão fantástica a ponto de ser um conto de Julio Cortázar.


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quinta-feira, 14 de maio de 2009

Delirium 2.

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As agulhas fincadas nos meus olhos
Todas as coisas pontiagudas nos meus olhos
Perfuram Furam Perfuram
Furam Perfuram Furam
E ainda não foram
Meus olhos riem, pois chorar é um clichê que fere.

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quinta-feira, 7 de maio de 2009

Nós, que hoje escrevemos, somos mortais medíocres?

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Nós, que hoje escrevemos, teríamos desejo de sermos tão oprimidos quanto foram nossos antecessores? Necessitamos de ferramentas absolutistas, ditatoriais para fomentar nossa criatividade? Temos anseios por exílios, deportação, tortura, espancamentos, perseguições? Se disséssemos sim nos afirmaríamos masoquistas e também concordaríamos que os sadismos desses governos eram uma benção. Quase todo o campo literário que se enquadra nessas épocas nada belas (Laid Époque / Feia Época) são os mais geniais que jamais lemos ou leremos, com certeza a afirmação é verdadeira, pois os meios que esses grandes homens e mulheres usaram e inventaram para fazer valer suas obras foram as maneiras mais heróicas e anti-heróicas que já vimos, mas aqui não usarei o ''que jamais veremos'', pois hoje ainda temos atos de heroísmo e de anti-heroísmo no meio literário; e temos (ainda bem) mais anti-heroísmo do que o primeiro exemplo.
Só que uma afirmação não é uma instituição. ''Melhor do que nós'', é uma corriqueira forma de nos referirmos aos escritores que viveram em épocas de chumbo. Aqui cabe fazer justiça ao Chumbo, este metal importante. Vou citar uma de sua melhores qualidades: a versatilidade. Lendo e pesquisando descobri que ''o chumbo tem facilidade em ser trabalhado, cortado, dobrado, soldado (…) é também empregado para atenuar radiações. Combinado a outras substâncias, tem aplicações na medicina (…) ou na composição de tintas que evitam a corrosão de superfícies metálicas''. E além de fazermos justiça ao metal vamos tratar de traçar analogias importantes entre o chumbo e os escritores e escritoras. O chumbo é matéria-prima para os tipos gráficos que serviram pra formar a letras que deram impressão nos livros das épocas ditatoriais, além disso temos a versatilidade de nossos escritores para serem lidos em época de censura, nada mais coerente do que isso, pois o ''chumbo'' (o governo) na sua cruel versatilidade de oprimir acabou encontrando adversários à altura, e esses adversários souberam 'trabalhar', 'cortar', 'dobrar' e 'soldar' muito bem essa época feita de puro chumbo. Com a rica criatividade, os que nessa época escreveram, souberam também 'atenuar radiações' contra o povo e não deixaram, essas mulheres e homens escritores, que nossa 'tinta' de humanidade fosse corroída pelos abrasivos ventos salgados das ditaduras. E há um detalhe que talvez justifique a raridade de produção literária de qualidade e mais uma vez recorro as minhas pesquisas sobre o chumbo para tal intento, aqui está a possível justificativa: ''muito embora seja um metal de variado emprego industrial, o chumbo não pode ser usado em larga escala, pois é escassa a sua quantidade na natureza''. É verdade, não é todo dia que extraímos Gullares, Pivas, Saramagos de uma mina literária.

Mas a pergunta que faço é: e a nossa época, é por acaso uma época de isopor? Leve? Sem densidade? As perguntas não são aqui uma forma de líbelo contra esse saudosismo a que estamos sujeitos, são antes de tudo uma exposição de que os 'chumbos' ainda pesam a mesma coisa no século XXI. E que, independente de dados históricos, existem fora das páginas de livros de história enfadonhos, novos escritores que sequer foram exilados ou tiveram suas obras proibidas em diversos países. E só por serem novos não significa que são menos geniais do que aqueles com mais de cinquenta anos. A idade na verdade não é o que dá valor à Saramago ou Ferreira Gullar, suas obras e letras não tem idades; nem mesmo o verso composto amanhã é menos genial do que aquele composto ontem. O tempo, ou época, ou ano, ou era, ou dia, ou hora, ou semestre, ou estação, ou minuto, ou década, ou nanossegundo, ou século, ou átimo não dão o valor que a arte da escrita teve, tem ou terá. Aqui cabe colocar a palavra ''transcende'', pois é isso o que se encaixa a coerente liberdade que a literatura tem. E não serão governos e suas formas bárbaras (trajadas de civilidade) de governar que nos farão respeitar mais ainda aqueles que nela mostraram sua criatividade. Primeiro nos cabe compreender que por mais opressora que seja a sistemática que governa um país ela não cuida de prender o pensamento do homem enquanto indivíduo; pois este pensamento, esta imaginação fantástica ou realística ou realística-fantástica é intrinsecamente livre, nem mesmo o indivíduo que pensa um pensamento tem total controle sobre este, quem dirá de todos os pensamentos que se têm ao escrever (eu que o diga, pois cada linha de texto é bem mais do que finalmente escrevo, antes milhares de pensamentos me ocorrem, mas milhares deles não caberiam em idioma conhecido, ou vivo, ou morto, ou ainda por ser inventado, e isso se aplica a maioria dos amigos e amigas que contemporaneamente comigo escrevem, não somos prolixos na escrita, mas nossos pensamentos deambulam ( e isso adoramos) ).

Portanto, sobre esse prisma do indivíduo-pensante-livre, as épocas de chumbo foram tão livres quanto as nossas épocas de isopor. Cabe a nós, que hoje escrevemos, tornar imanente em nós e transcender (não esquecer de ler!) os nossos ''deuses escritos'', pois nosso tempo é este e quem não percebeu isto então toque o íntimo de sua medíocridade e continue sendo um mortal ajoelhado perante aos imortais.


P.S.: Ainda estou ajoelhado, mas um dos joelhos começo a erguer.


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sexta-feira, 1 de maio de 2009

Não deu tempo!

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Esse texto se auto-destruirá em ...


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