segunda-feira, 1 de setembro de 2008

ÁRVORE

Pelas longas ruas de Paris caminha Catit. Alheia a tudo que acontece a sua volta ela compreende apenas a musica que escuta em seu player digital, uma coletânea repleta de musicas de rock obscuro, entre suas bandas favoritas estão Theater of Tragedy e Tristania, ela adora as guitarras pesadas e o vocal lírico, se pudesse ela cantaria como as vocalistas dessas bandas.

Catit é uma menina, uma mulher de pouco mais de vinte anos, de cabelos loiros, porem os tingiu de preto para combinar com a maquiagem pesada que costuma usar no rosto. O seu corpo esguio e franzino aparenta uma idade ainda menor do que a que possui. Com freqüência é barrada na entrada de Boates que freqüenta, acha um saco ter de mostrar sempre a identidade. Diz odiar essas boates, porem não as para de freqüentar por julgar-las um lugar onde não importa a roupa que use ninguém liga pra você dançando a musica, poderosa em seus movimentos lentos e compassados, no ritmo dos obscuros riffs de guitarra.

Toda a manhã segue o mesmo ritual. Levantar, lavar o rosto, escovar os dentes, não toma café, odeia coisas quentes, prefere um copo de água gelada para poder despertar, o banho que ás vezes toma em seguida também é gelado. Ela veste sempre o mesmo estilo de casaco, de preferência preto. De preferência de couro. Eles escondem o uniforme de garçonete que veste por baixo, não que ela tenha vergonha de sua profissão, mas por não gostar das cores amarela e azul do uniforme, onde já se viu um uniforme de garçonete amarelo e azul, deve ser a combinação de cores mais ridícula de um uniforme de garçonete no mundo inteiro, é o que pensa.

Ao caminhar pelas ruas de Paris ela percebe uma arvore que ela nunca nesses três anos trabalhando no Café du Monde havia reparado. Uma arvore escura, de folhas opacas e raízes expostas. Como nunca havia reparado nessa arvore? Era praticamente uma escultura gótica, suas preferidas, com os galhos distorcidos e fora de ordem como se fossem finos e longos dedos, como que estivessem tentando alcançar às outras arvores, como se fosse ganhar vida móvel em poucos instantes, como se olhasse pra ela e lhe pedisse um abraço. Como nunca havia visto aquela arvore? De repente tinha a certeza de que ela não estava lá antes.

Virou as costas e seguiu seu caminho para o trabalho. Nada ouvia que não fosse a musica “Cure” do Tristania que tocava no momento em seu Player Digital, não ouvia as buzinas, as conversas das pessoas na rua, não ouvia a velha senhora que pedia informação e que a xingava por não ter lhe dado atenção, não ouvia o bom dia que o senhor Olivier da padaria havia lhe dado como o faz todos os dias. – Mas que menina! Um dia ela retribui o meu bom dia. – assim falava o senhor Olivier da padaria. Ela talvez nunca o tenha realmente ouvido desejar o bom dia pra ela já que sempre passava em frente a padaria com o seu player digital no volume maximo, talvez se o tivesse ouvido teria lhe desejado um bom dia também. Talvez.

Dobrou a esquina e depois atravessou a rua. Parou diante da banca de revistas e leu as manchetes em um jornal, nada que realmente tivesse interesse, as manchetes mais importantes do dia eram a respeito da queda da bolsa de valores de New York, nas capas de revistas os rostos de artistas internacionais Hollywoodianos, muito longe da realidade daquela garota de pele clara como a neve. Então ela deixa a frente da banda de revistas e caminha os metros restantes para a estação de metrô.

Desce duas estações depois, o player agora toca um pouco de Lacuna Coil, uma banda italiana que compõe em inglês, da qual tinha algumas musicas que ela gostava. A que estava sendo executada no momento era “Within Me” do álbum Comalies. Ela queria poder cantar do jeito de Cristina Scabbia, a vocalista, mas não conseguia. Às vezes tinha a impressão de nem sequer saber como era sua voz, com certeza não era a mesma que ouvia em sua cabeça quando imitava os vocais líricos das musicas que adorava. Ela passa a catraca giratória da estação e sobe os degraus, agora apenas mais uns quatro blocos ate o Café du Monde, onde iria dar um turno de serviço.
Chega ao local de trabalho no final da musica. Desliga o player como se desligasse a fantasia e voltasse pra realidade.

Entra no café pela entrada de funcionários, vai ate o seu armarinho, tira o seu casaco preto, coloca o player na bolsa que carregava, arruma os cabelos pretos, retoca um pouco a maquiagem, mas pra seguir uma harmonia com o tom do cabelo do que pra parecer um pouco mais bonita. E ela era linda. Absolutamente uma menina linda. Uma mulher linda de lábios finos e definidos. De nariz pequeno e levemente empinado. De sobrancelhas expressivas. Chamava a atenção dos clientes, mas nunca respondia as suas investidas, as cantadas eram freqüentes, algumas sutis e criativas, outras nem tanto. E quem disse que o homem francês é um romântico?

Entrega Cafés e bolinhos, e tortas e torradas, e sucos e refrigerantes. E lava o rosto com cuidado pra não borrar a maquiagem. E aceita passivamente os toques indelicados de alguns clientes mais afoitos. Não gosta daquilo, mas precisa do trabalho. A sua arte, a pintura ainda não servia para pagar suas contas.

Alguns de seus colegas a acham esquisita, já tentaram conversar porem ela não demonstra interesse em conversas. Parece viver seu mundo quando escuta musica, algo alem disso, a realidade por assim dizer, não faz parte da vida dela. É apenas um mecanismo para suprir suas necessidades básicas. Comida, luz, telas e tintas.

Seu turno termina ao final da tarde. Ela pega o seu casaco no seu armarinho e o põe sobre o seu uniforme amarelo e azul, o mais feio uniforme de garçonete do mundo. Caminha de volta os quatro blocos ate a estação, já ao som de seu player digital, desta vez tocando Theater of Tragedy a faixa “As The Shadows Dance”. Adorava essa musica.
O caminho de volta pra casa parecia mais lento que a ida ao trabalho, aproveitava pra admirar a decadência da cidade do amor... ah Paris! Cidade do amor. Nunca me trouxe um outro amor. Apenas me tirou o único que já tive. Era o que pensava Catit ao ver um casal se acariciar na estação.

Morava sozinha, a mãe estava em Amsterdã com o padrasto, haviam se mudado por conta do trabalho dele. O Pai havia cometido suicídio ao saber do romance da mãe com o atual padrasto. Isso as afastou muito mãe e filha. Queriam Catit por perto, mas ela não quis ir morar em Amsterdã. Quis permanecer em Paris. E assim ficou. Sozinha em seu apartamento minúsculo.

Agora ouvia Placebo, uma banda um pouco fora da órbita do estilo que apreciava, mas adorava a musica “Centerfolds” deles. Ate arriscava cantarolar essa em especial: - “Camom Balthazar i refuse to let you die”. Entoava-a baixinho.

Desce em sua estação e caminha de volta pra casa. Pensa na arvore distorcida e de raízes grandes, que somente agora percebeu. Pensa em eterniza-la em uma de suas telas escuras. Ainda tinha certeza que aquela arvore não estava antes naquele local. Caminha em direção a ela. Analisa suas raízes. Pensa que elas parecem uma cama confortável, toda negra e úmida. Talvez não tão confortável. Toca o tronco e sente a aspereza da superfície, um dos galhos parece querer tocar a pele de Catit, em especifico a pele do rosto. Seus olhos se enchem de lagrimas. Ela sentiu uma tristeza ao tocar a arvore ainda maior que a tristeza de sua própria existência. Era como se as duas, ela e a arvore, fossem as criaturas mais tristes e solitárias do mundo.
Retorna agora pra casa, seu minúsculo apartamento, com a maquiagem inesperadamente borrada pelas lagrimas dos olhos. Ainda olha uma ultima vez para arvore e para os seus galhos, e para suas folhas opacas, e para as suas raízes expostas. Desliga o player digital ao mesmo tempo em que liga a música em seu som. Novamente “Cure” do Tristania. Ela caminha para geladeira e toma um outro copo de água gelada, se olha no espelho e cai aos prantos.

As lagrimas se confundem com o rímel que escorre. Ela sussurra algumas palavras. – “Oh mon dieu...”.

Agarra o seus pinceis e sua paleta, mas os atira ao chão em seguida. Abre uma lata de tinta preta e se aproxima de uma tela branca. Arremessa porções de tinta com as mãos e começa a esculpir o que em sua mente era a arvore que havia tocado lá fora. Outra cor, roxo e também tons marrom. Remexeu suas mãos por mais alguns minutos. Estava pronta a pintura. Não ainda faltava algo. E arremessa um punhado de tinta vermelha, que marca a tela como se fosse sangue. Agora esta pronto o seu ultimo trabalho.

Então caminha para a banheira, a água fria como a sua vida. Fria como suas emoções reprimidas. Como os acontecimentos do seu dia. Como a arvore do lado de fora, como o quadro que pintara. Ela entra na banheira e se acomoda. Então ao som da musica que se repetia pega uma faca que usava para abrir as correspondências, em sua maioria contas e cartas de sua mãe, clamando por noticias gostava de ler-las no banheiro. Ela passa a faca em um dos pulsos delicadamente, como se isso fosse possível. Para ela tudo era com grande e poderoso riff de guitarra.

Então a primeira gota mancha a limpidez da água. Vermelha era ela, e depois mais uma outra gota se junta à primeira. E pouco a pouco elas caem. Agora embebidas junto à água, apenas se misturavam e a tornavam turvas. Submerge então a cabeça. Ainda escuta a musica ao fundo. Sua vida não passa diante dos seus olhos como ela havia pensado que seria. O seu sopro de vida lentamente deixa de existir, a tristeza do seu coração é a sua única companhia nessa hora.

Por quê?

Nem mesmo ela sabia.

O fez e pronto.

Turvou a água límpida de vermelho.

Era tão branca como a porcelana da banheira.

Na água vermelha apenas seus joelhos ficaram pra fora.

No outro dia a musica ainda tocava no som...

O senhor Olivier da padaria ainda a esperava para lhe desejar o seu bom dia.

A arvore de galhos distorcidos, tronco áspero e raízes expostas, havia tombado do dia para a noite. Decepada como a vida da menina. Da mulher de vinte e poucos anos. De Catit.

Em seu funeral apenas a mãe, o padrasto e o senhor Olivier da padaria, que falava para a mãe da pobre menina:

- “Ela sempre me desejava um bom dia. Todos os dias”.

A mãe sorri.

1 Reações:

D. Q. M. disse...

Todos enchergam apenas Paris e esquecem que esse país nada seria sem as vidas que se desenrolam nele.
Bom texto, continuemos sem restrições nem obrigações. Inté!