sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Risadas e álcool (1ª Parte)

... e foi tão fácil, sem perigo.

- Sua boca é uma benção.
Sexo oral dentro do carro em uma rua deserta.

- 10 reais!
- Merece mais! – diz enquanto ri e puxa a cédula.

Ela abre a porta, sai do carro, limpa a boca e resolve ir pra casa.

O sol não dá trégua, ele entra em guerra constantemente contra a vontade deste homem. Ele anda lentamente enquanto os demais parecem estar na velocidade da luz. Esbarra, ‘me desculpe’. Mais um dia de andanças e mendicância. Vai pedir no sinal hoje, pois “a praça tem muita gente velha e lisa” e além do mais, ‘a concorrência tá aumentando, tem até moça bonita pedindo, assim num dá!”. Resmunga na própria mente as palavras que proferiu ontem em casa ( papelão estirado embaixo do toldo de uma padaria onde é o primeiro a comprar o pão). Sinal fechado.

- Uma esmola...
Um dedo indicando não, e outro, e outro, e outro...

- Uma esmola...
Dez centavos, depois trinta, depois vinte e cinco, depois oitenta. Um real e quarenta e cinco centavos em trinta segundos de sinal fechado.
- Uma esmola...

- Vai trabalhar!
Este homem todas as manhãs não sabe o que é bom humor, destila todo o seu veneno mal humorado em todos, nem mesmo a mulher em casa escapa, algo inadmissível, pois ela faz o café da manhã dele todos os dias; e este é o mesmo homem que, na noite anterior, achou ‘divina’ a boca de uma certa jovem. Esbraveja contra o velho pedinte, que uma vez já foi um padre.

- Não posso doutor... por favor – tenta arrancar pelo menos dez centavos do homem raivoso, só pra rir dele depois. Consegue. Aceita a moeda e pra mostrar a si mesmo que ainda tem orgulho deu essa moeda a outro que pedia perto dele.

- Obrigado. Esse aí tava puto hein...
Sinal fechado, o diálogo cessa. O mantra dos mendigos:
- Uma esmola...
Mais cinqüenta centavos. “Agora dá uma meota”, pensou. A taxa de câmbio, na bolsa de valores desse homem, é sempre calculada baseada na cachaça. Benze-se fervorosamente, lembranças da batina; e vai até o bar da mesma esquina, sua atual igreja. Onde os santos são fortes e ardentes

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

I

Sonhei que era Althusser antes do abismo da loucura. Cercado de mãos e olhos na loja de piano. Antes das mãos que estrangulariam a garganta da minha esposa. Pianos de cauda por todos os lugares, com homens de casaco ao meu lado sem rosto. Meus ombros pareciam encobri-los, e a vitrine da loja ao fundo com pedestres tão rápidos que se deformavam mais e mais. Mas tudo se iluminou. A luz jorrou no meu rosto e no meu peito. Minhas orelhas estavam brilhantes. Eles me seguraram. Meu rosto abriu-se a uma loucura de luz e chorei. Mas estava catatônico. Toda a cena era parada, em slides em preto-e-branco. Mas as pessoas lá foram mudavam e continuavam disformes. Os dois sujeitos ao meu lado seguraram meus pulsos, e amarraram minha cabeça com um pano cinza. Voltas e voltas em meu crânio como se atestasse na minha loucura a morte. Iluminei-me, como um anjo caído. Ali era a fronteira, entre os pianos de cauda. A fronteira da qual nunca mais voltaria. Era o abismo de luz. Um portal de luz no qual estava minha mulher deitada na cama, com marcas de dedos na sua garganta. Acordei.

“Sempre pensei J. que a única eternidade da vida é a morte. Continuo certo disso. O fato único de qualquer vida é o momento da morte. Não importa como você leve sua vida, não importa onde, não importa com quem, mas a morte vem para todos, sem distinção. Então J., digo a você que seus escritos têm muita vida, mas esquecem que a morte é o resultado natural de todos esses dramas ou alegrias. Pense nisto J. Declaro, portanto, que você vai morrer.”

Cruzei as portas. É só o que digo a mim nessa manhã. Cruzei as portas. O retorno talvez seja pelo mar de larva. Meu colchão está tomado por ele. A vida não pode mais ser aqui. Nunca pode, mas certamente agora é insuportável. Cruzei a fronteira de luz, Althusser. Não matarei minha esposa, não matarei ninguém. Mas o abismo de luz foi cruzado. Agora não me resta mais esperar. Nunca mais esperar. As horas não são mais horas, pois elas perdem o sentido quando o tempo não pode ser mensurado. O tempo agora é o tempo do espaço infinito, e minha locomoção é a das partículas na liberdade da comunhão do céu. Esqueço as portas. Elas nem sequer mais merecem ser lembradas. Levanto agora e narro meus passos até o banheiro. Althusser, porque sonhei com tua loucura? Por que teus dedos estranguladores não saem da minha mente? Por que o pescoço belo e branco da tua esposa parece roçar nos meus lábios? Quis beijar seu pescoço, mas teus dedos o encobriam. Não pude Althusser. Beijei teus dedos quentes. Agora o dia é você. Você foi o passo final para cruzar a porta. Mas sei que nada devo a você. Tua história não me impressiona. Mas a loucura sim, Althusser. Ela me impressiona. Cruzei as portas. Cruzei as portas e o chão é mar de larvas. Vou ao banheiro, portanto. Chego ao piso, e olho agora este homem sem casa. Olho agora esta cabeça que começa a ficar calva. Olhos esta barriga que não mete a minha preguiça. Olhos meus dias. Meus dias que o tempo os arrastou. Olho a privada. Papel? Mente aberta ao todo dessas palavras? Pego a toalha e seco minha pele molhada de suor. Olho novamente no espelho. Não, nada mudou. Nunca muda quando nós estamos vendo, mas de repente chega uma manhã na qual as olheiras estão tão grandes como um vazio negro que se expande. Um vazio que parece tomar nossa visão. Minhas olheiras hoje são dois barcos tristes, dois barcos sozinhos, dois barcos que não se encontram e que nunca nada acham. Minha pele parece a cortina velha da minha casa ou a parede da casa da minha mãe. Amarela, velha. Mas não sou velho. Nunca fui velho. Abro o chuveiro, então. Molho-me. Primeiro o pé sempre. Mas hoje decidi molhar a cabeça logo.

MERLEAU-PONTY E MICHEL ONFRAY: ENSAIO COMPARATIVO ENTRE DUAS FILOSOFIAS DO CORPO


Yuri Mourão Falcão




RESUMO

O objetivo deste ensaio é fazer um diálogo entre duas filosofias que ressaltam o corpo nas suas análises. Embora diferentes, o caráter de suas análises torna inevitável uma aproximação. Para Merleau-Ponty, o corpo é o modo fundamental de ser e de estar no mundo; visível-vidente, táctil-tocante, meu corpo se vê vendo, se toca tocando; não é uma máquina, nem um receptáculo de uma alma: eu sou o meu corpo.Para Michel Onfray, só há corpo, e este é exclusivamente material, e na sua obra, A Arte de Ter Prazer – Por um Materialismo Hedonista, essa concepção de corpo é virulentamente oposta ao ascetismo da razão.

PALAVRAS-CHAVE: Merleau-Ponty; Michel Onfray; Corpo; Materialidade.


MERLEAU-PONTY


Segundo Merleau-Ponty, o corpo, tanto em sua concepção mecanicista, quanto em sua concepção psicológica, resumia-se de fato a um objeto entre outros. Assim, “enquanto o corpo vivo se tornava um exterior sem interior, a subjetividade tornava-se um interior sem exterior, um espectador imparcial” [1]. Ambos os autores criticam a tradição descartiana, que separa mente e corpo, como veremos mais adiante.

Descartes havia defendido que os sentidos não são dignos de confiança, pois não trazem nenhuma marca da verdade. Mas para Merleau-Ponty, a cada instante no movi mento da existência estamos integrados ao mundo por meio do nosso corpo. Esta é a nossa condição. E, para compreendê-la, temos de reavaliar o fenômeno da percepção. Portanto, a atitude de Merleau-Ponty de questionar a percepção por si mesma tem por finalidade minar as bases que fundamentam essa desconfiança nos sentidos. Descartes acreditava que poderíamos possuir a verdade dos objetos pelo pensamento. Para Merleau-Ponty, ao contrário, a experiência da percepção é uma espécie de filosofia sem palavras que nos revela o caráter enigmático do mundo. Em suma, pensar não é possuir a representação do mundo, mas se dirigir a algo que aparece – sempre com restrições. Pensar é perceber um mundo que a cada instante desvela seus perfis. É relacionar-se com um mundo ao qual estamos integrados e do qual não podemos nos separar. O mundo não se encontra disposto diante de um espírito desencarnado, que o contempla e assim o domina, pois o corpo é o lugar do mundo que nos permite percebê-lo e pensá-lo. Portanto, aquilo que a tradição consagrava exclusivamente à consciência é experimentado no corpo: entrelaçado ao mundo, o corpo vê e é visto, e se vê vendo, toca e é tocado, e se toca tocando[2]. É uma interioridade exteriorizada, e uma exterioridade interiorizada. “O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles” [3].

A carne é um conceito singular para Merleau-Ponty, afirmando que ela é fundamental para a filosofia, porque não se trata da idéia de um corpo objetivo pensado a partir de uma alma e porque rompe com a separação entre sujeito e objeto. A carne não é nem matéria, nem espírito, nem substância:

Seria preciso, para designá-la, o velho termo ‘elemento’, no sentido em que era empregado para falar-se da água, do ar, da terra e do fog, isto é, no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espácio-temporal e a idéia.[4]

O pensar advém da carne que é um elemento de coesão entre as coisas que não é nem matéria, nem substância, nem espírito: “consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente”.[5]
Para Merleau-Ponty, o corpo, ao projetar-se, “cava no interior do mundo pleno no qual se desenrola o movimento concreto, uma zona de reflexão e de subjetividade, ele sobrepõe ao espaço físico um espaço virtual ou humano”[6], havendo, portanto, uma simultaneidade entre o movimento abstrato e o concreto, pois eles partilham de uma estrutura comum – a relação do homem ao mundo – não podendo ser vistos como realidades diversas: corpo e consciência não são, respectivamente, o concreto e o abstrato, já que se houvesse apenas o corpo compreendido como mecanismo, todo movimento seria concreto; e se houvesse apenas a consciência como puro saber absoluto, só haveria movimento abstrato.

A simultaneidade dos movimentos implica, por um lado, que a consciência seja efetivamente, não pondo sua situação como objeto, mas sendo com ela, tornando-se por isso mesma aberta e vulnerável; por outro, que o corpo seja ele próprio uma abertura, uma referência ao possível, negatividade e não existência em si. Preservar a diferença entre o concreto e o abstrato e a presença em ambos do corpo e da consciência equivale, enfim, a afirmar que estes são e não são ao mesmo tempo.[7]

A distinção entre o concreto e o abstrato não pode ser buscada na separação entre corpo e alma, e sim no reconhecimento de que “(...) para o corpo existem várias maneiras de ser consciência”[8]. Se o corpo implica a recusa de que todo sentido provenha de um Eu puro, e a afirmação da junção do sentido à existência, é porque o corpo é, ao mesmo tempo, sentido e materialidade. “Ser corpo é realizar a mediação entre a intenção e a efetividade, realizar a mediação entre a intenção e a efetividade, o não ser e o ser, operando a dialética entre o para si e o em si”[9].

Marilena Chauí observa:

A experiência é cisão que não separa – o pintor traz seu corpo para olhar o que não é ele, o músico traz seu corpo para olhar o que não é ele, o escritor traz a volubilidade de seu espírito para criar aquilo que se diz sem ele – e é indivisão que não se identifica – Cézanne não é a montanha Santa Vitória, Mozart não é a Flauta Mágica, Guimarães Rosa não é Diadorim. A experiência é o ponto máximo de proximidade e de distância, de inerência e diferenciação, de unidade e pluralidade em que o Mesmo se faz outro no interior de si mesmo[10].

Portanto, para Merleau-Ponty, as idéias e os pensamentos vinculam-se como experiências da carne, mas que são invisíveis. É o avesso do visível; é uma outra carne, mais leve, transparente. Esse invisível, não é invisível de fato, mas um invisível existencial. A carne do mundo não se confunde com nossa própria carne, mas é através daquela que compreende o corpo, assim como o corpo sensível não é o corpo sentiente. O corpo sensível é o que percepciona, enquanto o corpo sentiente é a reflexão do corpo em si, ou seja, tocar e ser tocado concomitantemente. A percepção é, portanto, um paradoxo, pois existe o lado que se percepciona e o lado que não se percepciona, mas que está ali:
Não vemos nem ouvimos as idéias, nem mesmo com os olhos do espírito ou com o terceiro ouvido: no entanto, ali estão, atrás dos sons ou entre eles, reconhecíveis na sua maneira sempre especial, única, de entrincheirar-se atrás deles(...)[11].

Meu corpo tem, portanto, como todos os entes, uma dimensão metafísica ou ontológica. Devemos nos deter aqui por um instante. Em que medida a filosofia de Merleau-Ponty comporta uma metafísica? Para evitarmos generalizações e críticas infundadas, temos que analisar sua crítica à metafísica clássica. Esse é o ponto-chave do nosso ensaio, pois nele as duas filosofias do corpo analisadas aqui divergem mais profundamente.

Merleau-Ponty pretende revisar as categorias e antinomias da metafísica clássica, como essas entre "sujeito" e "objeto," "interior" e "exterior," "objetivo" e "subjetivo" - todas derivadas da filosofia moderna -, que estabelecem de início direções e limites no tratamento da questão da relação entre corpo e alma. Merleau-Ponty procura outra via de análise que não essa estabelecida pela filosofia cartesiana, na qual corpo e alma representam duas realidades de natureza distintas, que tornam incompreensível a sua união. Na sua obra A Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty destaca os limites da psicofisiologia, destacando o reducionismo, o atomismo, o dualismo, o mecanicismo dessas análises. Para a superação desses limites propõe, como solução, uma analítica transcendental, por meio do qual o organismo passaria a ser analisado como um todo intencional inseparável do mundo. Não se deve analisar o fenômeno do comportamento pela suposição de que uma alma habita o corpo. Mas que se faça sem pressupor, em contrapartida, que aí não haja "alma" alguma, sem estabelecer, portanto, uma definição de corpo e de comportamento como negação de um termo que se considera problemático: "alma," "espírito" ou "consciência." O objetivismo pode apenas apontar para as estruturas físicas como condições sem as quais não se dá o fenômeno da percepção, mas não pode explicar a percepção, nem mesmo a fisiologia do organismo,

através desses fatos ou estruturas físicas, porque tanto um quanto outro representam ordens originais de fenômenos, distintas da ordem do fenômeno físico. O comportamento não é uma coisa, mas também não é uma idéia, ele não é o invólucro de uma pura consciência e, como testemunho de um comportamento, eu não sou uma pura consciência. É justamente o que nós queremos dizer afirmando que ele é uma forma.[12]

Em síntese, se o idealismo preserva a especificidade da consciência, é incapaz de compreender a sua inserção no mundo, se vincula à consciência a possibilidade de todo sentido, “é incapaz de apreendê-la enquanto situada, em estado nascente”[13]. Vemos aqui a idéia de consciência encarnada; a impossibilidade de um consciência pura, capaz de apreender o mundo em sua totalidade, e de um corpo resumidamente orgânico, feixe de músculos, ossos, células em geral.

Não se trata, pois, de recusar o naturalismo da consciência (a sua redução objetivista) simplesmente afirmando uma sede de subjetividade pura - possibilidade de todo fenômeno -, aquém da ‘promiscuidade e confusão’ entre corpo e alma, consciência e mundo, mas trata-se de ‘compreender como a consciência se apercebe ou se mostra inserida em uma natureza’[14].

O desenvolvimento da filosofia de Merleau-Ponty instaura o rpimado da corporalidade essencial da consciência. Nesse sentido, seu pensamento contrasta com a ontologia dualista das categorias corpo e espírito de Descartes. É isso que permite produzir uma filosofia do e pelo corpo. “(...), compreendido como fusão de sentido e existência, o corpo deixa de ser um objeto, um em si e passa a ser expressão do vínculo orgânico existente entre o ser e o nada”.[15]

Portanto, a filosofia pontyana traz uma noção que recusa ao mesmo tempo a concepção mecanicista do corpo e a concepção intelectualista de consciência.



MICHEL ONFRAY – A APOLOGIA DO NARIZ


A obra de Michel Onfray que analisaremos aqui (A Arte de Ter Prazer – Por um Materialismo Hedonista) é povoada de imagens propostas pelo autor que nos indicam a posição ocupada pelo corpo na sua filosofia. O livro começa com uma descrição-exemplo de seu enfarte, aos vinte e oito anos de idade:

Meu corpo parecia se escoar por uma fenda talhada a navalha naquilo que eu sentia como o avesso do meu coração. A brecha engolia minha carne, meu sangue e tudo o que pudesse apresentar-se sob forma de alma. Os músculos se retesavam até a tetanização, a mineralização, e o ritmo cardíaco se transformava em estridências. A consciência desaparecia naquele apocalipse que se tornava seu único objeto; eu já não era mais que uma imensa dor acompanhada de contorções, buscando desesperadamente uma posição aplacadora.[16]

O capítulo é intitulado de: Genealogia da Minha Moral. Seu enfarto é posto pelo autor como uma experiência fundante: “meu corpo experimentou uma sapiência que se transformaria em hedonismo.”[17] Do início ao fim, essas imagens percorrem as páginas para exemplificar, com a maior crueza possível, o lugar do corpo nas filosofias analisadas por ele e na sua própria. Aroma de esperma, lodo, lama, anjos atados a cadeiras, a batalha do falo contra o ascetismo, e, por fim, cadáveres abertos para estudos anatômicos. A filosofia de Onfray é uma batalha sem a politese acadêmica, opondo o nariz – que no sistema de castas do corpo ocupa o lugar de paria – à razão ascética. Existem duas referências principais no seu livro: La Mettrie e o Marquês de Sade. Suas obras, suas vidas, exemplificam muitos dos pontos abordados por Onfray no seu materialismo hedonista. Se não há, como criticam alguns, uma apresentação sistemática da sua filosofia do corpo, sendo apresentada em críticas a uns e elogios a outros, Onfray traça um caminho extremamente fértil para uma filosofia do corpo.

“Uma carne habitada pelo entusiasmo, pela desordem e uma estranha parcela que lembra a loucura, a histeria, a possessão, é o que parece excêntrico, incongruente”.[18] Exemplo maior de sua filosofia do corpo é o que ele chama de “hápax existenciais”: experiências radicais e fundadoras que fazem surgir do corpo êxtases, visões, gerando revelações que se configuram como concepções de mundo coerentes e estruturadas. “A tensão habita a carne longamente. O corpo é um estranho lugar em que circulam influxos e intuições, energias e forças”.[19] Eis o corpo: cadinho de experiências para o filósofo, lugar percorrido por energias. Citando Bérgson:

“A matéria e a vida que enchem o mundo também estão em nós; as forças que atuam em todas as coisas, sentimo-las em nós; seja qual for a essência íntima do que existe e do que se faz, nós fazemos parte dela.”[20]

Essas experiências fundantes, os hápax existenciais, que transformam a energia que habita o corpo longamente e que se configura em concepções de mundo dão-se através da intuição.

‘Intuição’, escreve (Bergson) em O pensamento e o movente, ‘significa em primeiro lugar consciência, mas consciência imediata, visão que mal se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e até mesmo coincidência’.[21]

. Levando em conta as noções dinâmicas de Bergson – como elã vital, trocas de tensão e energia – Onfray vê o pensamento como proveniente diretamente do corpo:

O pensamento é um produto da carne que sofre e que registra as menores vibrações da existência, resulta de um compromisso com forças que dinamizam o organismo com a finalidade de evitar a fratura, a quebra, a loucura, o desequilíbrio.[22]

Critica a negação do corpo por um racionalismo que não aceita que o pensamento provenha do lodo do corpo. Nesse sentido, Onfray evoca o nariz: as narinas conduzem ao cérebro primitivo e não deixam de associar fortemente os eflúvios à sexualidade. Levantar-se contra o olfato é ao mesmo tempo recusar o corpo em suas exigências mais imperiosas.

(...), aos odores é atribuído um coeficiente de a-socialidade, do mesmo modo que à volúpia, ao erotismo e à sexualidade de que ele participam. Por conseguinte, coloca-se como antagônico o entendimento, capaz das mais impalpáveis proezas conceituais, donde a depreciação do faro, por definição incapaz de abstração e de contribuição ao puro conhecimento[23]

. Recalcando esse sentido, os filósofos fazem o elogio da visão e dos sentidos que instalam as imagens e os sons como únicas modalidades apresentáveis da relação com o mundo. Tudo que lembra a situação do homem enredado na natureza é apagado. “Os sentidos são, portanto, os princípios do contato do indivíduo com o mundo que o cerca”[24]. Na relação entre a matéria e o comportamento, entre o corpo e os pensamentos, o olfato alcança a dimensão essencial de modalidade do que os contemporâneos chamariam de estar-no-mundo. “Cheirar é compreender”[25]. Evocando a imagem do anjo para exemplificar o ascetismo da cultura ocidental:

Antimatéria, antes de mais nada, o anjo é livre dos imperativos de tempo e de espaço, de finitude e de composição ou de movimento(...) Se é difícil imaginar um anjo saboreando uma teta de leitoa recheada no festim de Trimalcião, sabe-se, por outro lado, que eles se nutrem de maná, um alimento fabricado especialmente por Deus para satisfazer os filhos de Israel perdidos no deserto (...) Nada de charcutaria para o inefável[26].

A consciência não é exterior ao corpo: é uma das modalidades deste. Ela é do corpo, o que melhor exprime as veleidades apolíneas de ordem. Pela consciência se tecem as formas com que a energia se faz carne. A consciência seria, portanto, uma modalidade do corpo, que capta as energias, os influxos, provenientes do corpo, transformando-as, dando sentido a elas. A consciência informa as potencialidades vitais do corpo para concentrá-las em ações, condutas, comportamentos.

A consciência é o instrumento com o qual se pode produzir um estilo, mostrar uma maneira original e singular de dar forma a suas virtualidades. Por esse exercício, os homens se distanciam da bestialidade, afirma sua excelência. [27]

. O cérebro age como um filtro que decodifica o prazer, lhe dá sua plenitude e sua forma intelectual. A filosofia de Onfray desemboca no prazer como aceitação da materialidade do corpo, propondo um hedonismo como filosofia. Uma carne capaz de erotismo e de gastronomia, de estética e de música, de sensações táteis e olfativas.

Com o prazer como fio condutor da ética, ‘o homem já não é artista, é ele próprio obra de arte’. Um corpo artístico, estético é pois necessário: contra os anjos e suas tentações brancas, seus modelos translúcidos, a carne deve tornar-se virtude[28].

Na galeria dos hedonistas encontram-se bêbados, sodomitas, monges e monjas ateus, sonhadores de cidades ideais, devoradores de esperma, poetas que morrem de indigestão, travestis. São eles quem professam o ateísmo, o materialismo, o estetismo, o vitalismo. Sade, a principal referência no livro de Onfray, e sua escola da libertinagem são bastante explorados na parte do livro que se intitula Virtudes: “Fode, em suma, fode; é para isso que vieste ao mundo; nenhum limite ao prazer a não ser o de tuas forças ou de tuas vontades; nenhuma exceção de local, de tempo ou de pessoa; todas as horas, todos os lugares, todos os homens devem servir a tuas volúpias; a continência é uma virtude impossível”[29]. Para Sade, o indivíduo é uma máquina submetida a essas leis e nada pode fazer com que ele esteja sob autoridade que não a do necessário. “A matéria é um tirano imperioso que submete o real a seus princípios”[30]. La Mettrie, outra importante referência, diz que a carne é o lugar em que se faz o pensamento, também é o composto de matéria atravessado por desejos e prazeres. O corpo é uma máquina de gozar e de sofrer, e é impossível agir sobre o seu funcionamento.

A alma não é mais do que um princípio do movimento, ou uma parte material do cérebro, que se pode, sem temer o erro, considerar como uma mola principal de toda a máquina, que tem uma influência sobre todas as outras. [31]

. O materialismo hedonista de La Mettrie supõe uma exarcebação da presença no mundo, uma adesão plena e inteira ao que constitui a substância do real.

O livro de Michel Onfray não é um tratado tedioso sobre o corpo, mas, muitas vezes, uma prazerosa narrativa do prazer. Não estabelece tópicos sobre especificidades do corpo, da relação corpo e forma, corpo e consciência, fisiologia, mas nos proporciona insights incrivelmente férteis sobre a materialidade e a possibilidade de uma filosofia renovada. Digamos que Michel Onfray tem não uma idéia, mas uma intuição: a materialidade do corpo, o prazer contra o ascetismo da razão, as múltiplas formas da matéria. Evocando Sade e sua escola da libertinagem, o autor nos mostra o prazer em seu extremo: nunca combatido como demasia ou desrespeito à vida, mas apenas como diferenças de intensidade... Mas, pensando numa moral que adota o imperativo do prazer, o autor nos propõe que, com o fogo de Sade, devemos apenas nos aquecer.

Quando está decidido que se pode fazer do gozar e fazer gozar um imperativo categórico hedonista, põe-se em funcionamento uma estratégia que permite a emergência de virtudes – as virtudes do júbilo.[32]

. O hedonismo é o grande sim à vida que Nietzsche clamava.



CONCLUSÃO

Embora não possamos analisar esses autores mais apuradamente, suas filosofias nos proporcionam a discussão da materialidade. Contra a dicotomia descartiana, o corpo: não mais a materialidade grosseira, a prisão da mente, mas a nossa condição neste mundo. Não há mais nós e o nosso corpo: nós somos o nosso corpo. Dois pensadores essenciais para uma filosofia que pretenda pensar o corpo.

[1] MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da Percepção. Editora Martins Fontes, São Paulo, 5ª ed. 2006, p 88.
[2] CHAUÍ, Marilena. Revista Cult. Nº 123, ano 11. Merleau-Ponty: a obra fecunda. In: Merleau-Ponty – “a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”.
[3] MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da percepção. Editora Martins Fontes, São Paulo, 5ª ed. 2006, p 122.
[4] Ibidem, p.136
[5] CAMPOS MOURA DE, Alex. A relação entre Liberdade e Situação em Merleau-Ponty, sob uma perspectiva Ontológica. http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2006_mes/alexcamposmoura.pdf
p. 43.
[6] MERLEAU-PONTY, Maurice. A Fenomenologia da Percepção. Editora Martins Fontes, São Paulo, 5ª ed. 2006, p 160.
[7] CAMPOS MOURA DE, Alex. Op. cit. P.43
[8] MERLEAU-PONTY, Maurice. Op. cit. P. 175.
[9] Idem.
[10] CHAUÍ, Marilena. Op. cit. p. 47.
[11] VIVIANI, Ana. O corpo glorioso: um diálogo entre Merleau-Ponty e Michel Serres. http://www.compos.org.br/files/25ecompos09_AnaViviani.pdf
[12] Merleau-Ponty, cit, por Furlani.
[13] Idem.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] ONFRAY, Michel. A arte de ter prazer – por um materialismo hedonista. 1º ed. São Paulo: Martins Fontes. p. 13.
[17] Idem.
[18] Ibidem, p. 29
[19] Idem.
[20] Ibidem, p. 35.
[21] Ibidem, p. 34.
[22] Ibidem, p. 49.
[23] Ibidem, p. 123.
[24] Ibidem, p. 114.
[25] Ibidem, p. 115.
[26] Ibidem, p. 129.
[27] Ibidem, p. 170.
[28] Ibidem, p. 225.
[29] Ibidem, p.285.
[30] Ibidem, p.279.
[31] Ibidem, p. 274.
[32] Ibidem, p. 311.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

MULUNGU

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Minha Pátria são meus Amigos e a capital é Mulungu.


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